segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

A doença e pobreza: um círculo vicioso

Pessoas que convivem com miséria no bairro Jardim das Américas ilustram a forte relação entre o social e a doença

Helena Krüger

“Miséria é miséria em qualquer canto. Fracos, doentes,
aflitos, carentes. Riquezas são diferentes
O Sol não causa mais espanto. Miséria é
miséria em qualquer canto. Cores, raças, castas, crenças”.

Arnaldo Antunes

Altino e Nerci Machado, Maria de Lourdes Pereira da Silva, Maria Aparecida Souza e seu filho Luiz Fernando vivem no bairro do Jardim das Américas, um local afastado do Centro e uma das regiões mais pobres e carentes de Guarapuava. Lá, enxerga-se o que é, efetivamente, a miséria, desigualdade e acima de tudo a exclusão. O modo de viver dessas três famílias reflete uma realidade de sofrimento, de pessoas que convivem com a falta de alimento, residem em casas que não oferecem uma condição digna, muitas vezes não há uma renda fixa. Elas são ignoradas, seus problemas e dificuldades não são ouvidos. Estão, definitivamente, à margem da sociedade. Seres humanos que além de passarem por todos esses problemas de origem financeira, convivem no dia a dia com um sofrimento ainda maior que é a doença, tanto de ordem física como emocional.
Muitos fatores compõem essas realidades de miséria, trata-se de um problema sistêmico, um processo que tem raízes e origens complexas. São indivíduos inseridos num contexto histórico, cultural e sócio- econômico. Vivem em locais excluídos, lugares que são chamadas pelo sociólogo Zygmunt Bauman de invisíveis, ou seja, a sociedade como um todo não os enxerga.
A história dessas famílias demonstra que doença é também um processo social e que a miséria e as condições do meio interferem e muito no estado de saúde.

Altino e Nerci Machado
Altino Acir Machado, 57 anos, mora há mais de 30 no bairro e conta que doença de sua esposa, Nerci, modificou completamente a sua vida. Ele fala que era um homem trabalhador, mas precisou abandonar o trabalho para poder cuidar melhor de Nerci. Segundo seu Altino, depois que a mulher adoeceu, ele quase não pode sair de casa pelo medo de deixá-la sozinha. “Há mais ou menos três anos, ela sofreu um derrame, e ficou assim com a língua enrolada, não fala coisa com coisa e até anda não anda direito, fica se balançando”. O senhor não sabe explicar ao certo o que ela tem, mas mostra uma caixa cheia de remédios que consegue através do Caps (Centro de Atenção Psicossocial), um dispositivo que reserva atenção especial à saúde mental.
O estado de saúde de Nerci comprometeu a capacidade de realizar as atividades mais simples, até mesmo para se alimentar depende do marido. “Somos só nós dois aqui em casa, por exemplo. Se eu sair até fome ela passa, porque não sabe mais cozinhar, nem faz outros serviços de casa, tudo tem que ser eu mesmo”, desabafa seu Altino.
Com muitas dificuldades financeiras, a rotina de Altino se resume em cuidar da mulher e revela que sobrevive apenas com o dinheiro que consegue vendendo matérias recicláveis. “Não dá nada, se for pra trabalhar dá uns cinquentão por mês, mas como é só eu e ela a gente se vira”.
É estranho ver como o senhor conta com naturalidade todo o sofrimento que já teve na vida. “Perdi um filho agora faz uns seis meses, e outro quando tinha oito anos, passei muita crise. Até a minha casa pegou fogo a um tempo atrás que tive que reconstruir sozinho, queimou tudo, ficamos sem nenhum documento”.
Apesar de tantos infortúnios, o senhor continua de bom humor e demonstra ter muita preocupação e amor por sua esposa. “A Nerci é minha esposa há mais de 50 anos, é a primeira, nunca troquei, não tem como abandoná-la. A gente fica triste porque esse negócio que deu nela comprometeu completamente, essa mulher era trabalhadeira, me ajudava muito”.
Muitas vezes, é difícil acreditar como essas pessoas sobrevivem. A pobreza, quando alcança este nível, causa um estado de desilusão, indivíduos não conseguem mais enxergar uma saída aparente e acabam caindo no comodismo, nem mesmo sabem dizer o que gostariam que mudasse na vida. Seu Altino lamenta e fala que depois de tanto acidente na vida, agora o quer é se aposentar.

Maria Aparecida Silva e família
Aos 45 anos, Maria Aparecida Souza e o marido, Joel Brasil da Silva, 47 anos, estão desempregados e precisam cuidar de um lar com mais cinco pessoas. Ela precisou abandonar o trabalho por motivos de saúde depois que teve um derrame e conta as dificuldades que as doenças trouxeram. “Eu trabalhei muitos anos, mas me deu um derrame e a daí não posso pegar nenhum serviço, passei três meses na cadeira de roda”. Dona Maria também é hipertensa, apresenta colesterol alto e ainda tem dificuldades para caminhar, o que impossibilita sua capacidade de trabalho. “Eu até tenho vontade de fazer alguma coisa e voltar pro serviço, mas quando me ataca a pressão fico muito ruim, tenho problema na coluna e minhas pernas incham de um jeito que não dá pra andar. Fora isso, ainda preciso cuidar das crianças”. A sacola de remédios é grande, ela toma diariamente quatro tipos de medicamentos.
Maria não é a única que está com problemas de saúde na família, o filho mais velho, L.F*, tem quatorze anos e tem algum tipo de transtorno psíquico que a mãe não sabe explicar o que é. O menino, desde os oito anos, é tratado e hoje toma remédios controlados com acompanhamento médico do Centro de Atenção Psicossocial. Conforme a mãe, o menino nasceu prematuro, de sete meses, e ficou com alguma sequela. “Deu um problema nele que comecei a tratar desde pequeno, fiz um pouco de tratamento e parei, agora ele voltou e toma remédios que pego no Prosam [Programa de Saúde Mental], que é da prefeitura”. Ela diz enfrentar muitos problemas no relacionamento com L.F e que o adolescente também tem dificuldade na escola. “Ele é bastante bravo e nervoso, até nos estudos não vai bem, ainda está na quarta série e repetiu várias vezes a terceira”. No entanto, percebe-se que a falta de informação e ausência de um atendimento médico mais qualificado acaba por agravar o quadro das doenças, que muitas vezes não são tratadas de maneira adequada. A senhora reclama e diz não saber até hoje exatamente o que o filho tem. “Eles não explicam direito, não falam nada, só me dão receitas e remédios”.
Quando foi questionada se teria vontade de mudar algo em sua vida, Maria ficou pensativa e logo disse muito emocionada: “é difícil dizer, tem muita coisa, mas se a gente conseguisse alguma aposentadoria seria melhor. Esses tempos, comprei um remédio que o médico me receitou para dormir, e também porque do nada me dá uma vontade de chorar”.
O marido, Joel Brasil da Silva, 47 anos, relata que aliado a pobreza e problemas de saúde, a família já passou por muitos traumas. “Duas das minhas filhas foram abandonadas pela mãe que morava no Cantagalo, e lá aconteceu de uma delas sofrer um abuso sexual, aí a gente conseguiu a guarda delas”.
No caso da família de seu Joel e de muitas outras, o fator emocional e o contexto psicossocial da doença ajudam a agravar o quadro dos doentes.

Maria Lourdes Souza
“Sou doente das pernas e dos ossos, a doença me prejudicou em tudo, eu não faço nada”. Com essas palavras, dona Maria Lourdes de Souza, aos 63 anos de idade, resume a sua condição atual.
Dona Maria e o marido recebem o auxílio-doença do governo há quase dez anos, ambos sofrem diferentes tipos de doenças. A senhora Lourdes conta que há seis anos descobriu que tinha câncer no estômago, com a enfermidade passou mais de três anos realizando em um longo tratamento com quimioterapia, que fazia em Curitiba custeado pelo SUS. Hoje, do câncer está curada, porém seu estado de saúde continua complicado. “Tenho gastrite, hérnia, tireoide muito grande e essa doença que deixa minha perna inchada, mas não sei dizer o nome, por isso não posso sair sozinha, sou muito esquecida, me perco fácil e me dá um tipo de desmaio”.
Maria Lourdes sempre foi dona de casa, e diz sentir saudades do tempo que era sadia. “Minha rotina é a doença, a cada três meses preciso aplicar 10 injeções, tomo dois remédios controlados que são contínuos, o médico me explicou que são para sempre”.
O casal recebe o salário mínimo, eles dizem viver com tranquilidade financeira, mas é claro sem nenhum conforto, já que a renda é gasta com muitos medicamentos. “A maior parte do meu dinheiro vai para os remédios, o do meu marido vai para a comida”.

Terapia Comunitária
A TC (terapia comunitária) é um procedimento terapêutico que surgiu no ano de 1987, em Pirambu, uma das maiores favelas de Fortaleza. Ela começou pela iniciativa do advogado Aírton Barreto, que desenvolvia um projeto de apoio a favela e percebeu que grande parte dos problemas na comunidade estavam relacionados a questões psicológicas Assim, resolveu chamar o irmão, que era psiquiatra, Adalberto Barreto, que foi o idealizador do projeto que visava realizar sessões terapêuticas em grupo, e tinha a intenção da comunidade trabalhar em conjunto para melhorar a saúde mental. A TC forma líderes e terapeutas da própria região, cria redes solidarias e voluntárias que ajudam a curar a doença tanto emocional quanto biológica.
Segundo o psiquiatra, Adalberto Barreto, pessoas que convivem com extrema pobreza sofrem da chamada “síndrome psíquica da pobreza”, que ocasiona uma série de doenças que têm origem no sofrimento, baixa autoestima, além de má alimentação e problemas de saneamento.


Quase ametade da renda da família de dona Lourdes é destinada emmedicamentos


DonaMaria emocionada relata como a doença está presente em sua vida


Seu Altinomostra a caixa de remédios da mulher que sofre de alguma doençaneurológica

Editado por Gabriela Titon

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