segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Hanseníase: desconstrução de um estigma

Anita Hoffmann

Exclusão e silêncio. No passado, esse era o único destino dos portadores da lepra, hoje, chamada de hanseníase. Os “leprosos” eram considerados seres impuros, indignos e, no imaginário social, a doença estava diretamente ligada à sujeira e ao pecado. O estigma, muito mais do que físico, era psicológico e, por mais que a cura já tenha sido encontrada, a falta de conhecimento ainda gera um grande preconceito em relação à doença. A maior prova disso é o fato de nenhum portador da hanseníase ter aceitado conceder entrevista, mesmo sabendo que seus nomes não seriam divulgados.
A hanseníase é considerada a doença mais antiga do mundo; um esqueleto de mais de 4000 anos apresentando sinais da enfermidade foi encontrado na Índia e registros egípcios também apresentam relatos sobre a doença. Na Bíblia, encontram-se diversas referências à lepra, ora relacionadas à doença real, ora erroneamente ligadas a outras doenças dermatológicas. Entre os hebreus, o diagnóstico da lepra não estava a cargo dos médicos, mas sim dos sacerdotes. A enfermidade era considerada uma evidência de pecado, um castigo divino. Os leprosos deveriam abandonar suas casas e resignar-se à solidão. Já no Novo Testamento, existem dois trechos que citam que Jesus demonstrou compaixão e carinho aos leprosos, curando suas feridas.
A denominação “hanseníase” surgiu em 1874, em homenagem ao norueguês Gerhard Hansen, que descobriu o bacilo Mycobacterium leprae, microorganismo causador da doença.
O bacilo de Hansen tem predileção pela pele e por seus nervos periféricos. Ao atacá-los, dificulta os movimentos dos pés, das mãos, dos olhos e causa amortecimentos. Segundo a dermatologista e hansenologista Iara Rodrigues Vieira, do Ambulatório Municipal de Pneumologia e Dermatologia Sanitária de Guarapuava, a perda de sensibilidade é um dos fatores mais preocupantes dos portadores da hanseníase. Como eles deixam de sentir dor, acabam batendo certas partes do corpo e fazendo lesões e feridas. “Reclamamos da dor, mas senti-la é algo maravilhoso, pois prova que estamos com reflexos em nosso corpo. Quem tem hanseníase, por exemplo, pode colocar a mão em uma chapa quente que não vai sentir nenhuma dor, porém, fará uma grave queimadura”.
A médica explica que a hanseníase é a doença crônica que apresenta maior tempo de incubação: de dois a cinco anos. “Algumas pessoas até já apresentaram a doença depois de dez anos”. Apesar de ter cura, quanto antes diagnosticada e tratada, mais facilmente será eliminada do organismo.
Existe uma ideia errada de que a hanseníase pode ser transmitida por contatos físicos, como abraços e apertos de mão. Muitos chegam até mesmo a acreditar que podem pegar a doença se sentarem no mesmo lugar que uma pessoa portadora sentou. Iara explica que a transmissão da hanseníase não é algo tão simples e apenas acontece com contatos mais íntimos e prolongados. “A hanseníase é transmitida pela tosse e espirro. Como é uma doença que precisa de uma carga bacilar muito grande para ser transmitida, a pessoa precisa ter um contato prolongado com o portador da hanseníase para pegá-la”.
O tratamento é oferecido de forma gratuita nos postos de saúde. Quem apresenta os sintomas da doença, que são manchas amortecidas pelo corpo, caroços que não coçam, dificuldades para pegar objetos, feridas na sola dos pés e bolhas nos braços e mãos, tem de ficar atento e procurar ajuda médica. De acordo com a dermatologista, todo o tratamento médico é oferecido pelo governo e os pacientes também têm acompanhamento psicológico para lidar com o problema. Quem tem poucas condições financeiras recebe atendimento de assistentes sociais e, caso seja necessário, recebe cestas básicas.
Motivada por histórias que ouvi de minha vó, Dona Edinê, escrevo esta matéria. Foi por ela que tomei o conhecimento, ainda criança, do passado obscuro de Guarapuava em relação à hanseníase e dos tratamentos desumanos que os portadores da doença tinham na cidade: eles eram tratados pela sociedade como cães sarnentos e viviam em uma localidade excluída da cidade, hoje chamada de Alto Cascavelzinho. Uma das histórias contadas por minha vó me causou grande choque: quando os leprosos vinham ao centro da cidade para fazer compras, a maioria dos estabelecimentos comerciais eram fechados; poucos aceitavam negociar com eles, por medo de pegarem a doença. Quando algum comerciante aceitava vender para essas pessoas, negociava apenas com moedas, pois, assim, acreditava que colocando os metais no álcool, poderia livrar-se da possibilidade de ser contaminado.
Beatriz Anselmo Olinto, professora do Departamento de História da Unicentro, pesquisou em seu doutorado sobre a lepra no Paraná, em especial, em Guarapuava. Seu trabalho deu forma ao livro "Pontes e Muralhas: diferença, lepra e tragédia no Paraná do início do século XX". Segundo Olinto, “a lepra é uma doença de manifestação lenta e prolongada que, até 1941, não conhecia nenhum tratamento comprovadamente eficaz”.
No final do século XIX e início do século XX, Guarapuava era uma das cidades que mais registrava casos de lepra no Paraná. Na realidade, até hoje ela ainda tem altos índices: segundo dados do Datasus (Departamento de Informática do SUS), Guarapuava é a segunda cidade paranaense com mais casos de hanseníase. A média é feita de acordo com o número de habitantes proporcionalmente a sua população. O surto da doença era tão grande que, por várias vezes, foi cogitada a construção de um leprosário para o isolamentos dos doentes.
Em seu livro, Olinto cita trechos do jornal O Guayra, que circulou em Guarapuava no final do século XX e na metade do século XX. Em 1898, foi discutido na Câmara Municipal sobre a necessidade de isolarem os doentes em um leprosário. Seria uma boa solução construí-lo na cidade, já que, além de existirem doentes guarapuavanos, pessoas de outras cidades também vinham “esmolar” aqui. Vale lembrar que na época ainda não existia nenhum tratamento eficaz para a doença e os países que possuíam muitos casos de hanseníase encaravam o isolamento como o cuidado mais eficiente e natural para evitar a transmissão.
Em 1899, a Câmara sancionou uma lei que previa que um leprosário fosse construído na região do rio Coitinho, porém, apenas os doentes já residentes no município poderiam “beneficiar-se” dele. Caso as obras não iniciassem no prazo de um ano, elas caducariam. Foi o que aconteceu. Segundo Olinto, o motivo de esse leprosário não ter sido construído foi a intenção de Guarapuava em querer incentivar a vinda de imigrantes europeus para a cidade. Isso traria progresso econômico e industrial. Caso a cidade continuasse apresentando grande número de “leprosos”, os europeus não a escolheriam.
Como Guarapuava deixou de se interessar na construção do leprosário, os recursos foram destinados a Piraquara, região metropolitana de Curitiba, onde foi construído o Leprosário São Roque. Fundado em 1927, São Roque era um lugar muito moderno para os padrões da época e oferecia aos seus pacientes atividades esportivas e culturais. A partir do estabelecimento desse leprosário, todos os doentes do Estado foram obrigados à internação. Não havia escolha. A eles era dito que, já que a doença ainda não possuía cura, era lá que eles deveriam esperar até o dia dessa grande descoberta. O bem coletivo prevalecia sobre a liberdade individual. O que antes fora um leprosário hoje é o Hospital Dermatológico do Paraná, referência no tratamento da hanseníase no Estado. Hoje, outros problemas dermatológicos também são tratados lá.
No passado, muitas histórias eram contadas e inventadas em relação aos leprosos. Edinê lembra que, quando pequena, sua mãe dizia para não aceitar balas de ninguém desconhecido, pois comentava-se que alguns leprosos lambiam os doces, embalavam novamente e ofereciam às crianças para passar-lhes a doença. Em seu livro, Beatriz também comenta sobre isso. Essas lendas urbanas eram criadas justamente para legitimar as ações de exclusão e expulsão dos doentes do município. Para grande parte da sociedade, essas pessoas eram tão cruéis que não bastava apenas ter a doença, era necessário transmiti-la para a maior quantidade de gente possível.
Até a década de 40, a Dapsona ainda não tinha sido descoberta e o tratamento ao qual os pacientes eram submetidos era feito com óleo de chamoulgra. O processo era bastante doloroso e o óleo era aplicado pelo médico com infiltração intradérmica ou tratamento de plancha. Este, além de causar dor intensa, também gerava pigmentação escura na pele dos “leprosos”.
Iara conta que hoje o tratamento é bem mais simples e tem total eficácia. Já não é mais necessário ficar internado e isolado em hospitais e leprosários. Para quem tem a hanseníase em sua forma paucibacilar (ocorre em pessoas com alta resistência ao bacilo, é mais fraca e, geralmente, não-transmissível), o tratamento dura seis meses e é ministrado com doses de Dapsona e Rinfampsina. O paciente que tem a hanseníase em sua forma multibacelar (altamente transmissível; causa atrofia muscular, inchaço das pernas e surgimento de nódulos na pele) deve fazer um tratamento de um ano com Dapsona, Rinfampsina e Clofazimina.
A partir do momento que o portador da hanseníase começa a poliquimioterapia com esses remédios, mesmo que tenha a forma transmissível da doença, deixa de oferecer riscos de transmissão. Alguns efeitos colaterais podem ser sentidos por causa do tratamento, porém, é possível trabalhar e levar a vida normalmente.
Há oito anos, foi criada em Guarapuava uma associação para auxílio das pessoas com hanseníase, a AFH (Associação de apoio às famílias com hanseníase). A assistente social responsável pela sede em Guarapuava (A AFH funciona também em Itajaí e Londrina), Juliane Fabris Portela, conta que, hoje, cerca de 150 famílias são atendidas. A associação recebe doações de roupas, fraldas e alimentos e depois encaminha para os portadores da doença. “As pessoas que recebem nossa ajuda são bastante pobres e para elas a cesta básica que doamos todos os meses realmente faz grande diferença”, comenta Juliane.
Em contrapartida, Iara alega que os portadores de hanseníase têm todo o atendimento necessário oferecido pelo governo e que não é necessário existir uma instituição, à parte, responsável por isso.
O termo lepra passou a ser criminalizado durante o mandado do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Em 29 de março de 1995, ele assinou a lei 9010, na qual , em seu artigo 1, determina que “ o termo ‘lepra e seus derivados não poderão ser utilizados na linguagem empregada nos documentos oficiais da administração centralizada e descentralizada da União e dos Estados-membros”. Também foi feito um artigo para explicar quais termos deveriam ser empregados a partir daquele momento: o termo “lepra” deu lugar para o termo “hanseníase”, e “leproso” virou “doente de hanseníase”.
Em 2007, o Governo Federal estabeleceu um decreto que oferece a todas as pessoas que foram internadas em leprosários e sofreram constrangimentos pela sua doença uma pensão vitalícia de R$ 750. Existem alguns filhos de portadores de hanseníase que lutam por uma indenização do governo pelo fato de terem sido separados dos seus pais no período de 1923 a 1986.
Independente de pensões ou indenizações, o que aconteceu no passado é algo impossível de ser apagado do imaginário social. As chagas deixadas pelo preconceito e isolamento que os leprosos sofreram permanecem latentes até os dias de hoje. Campanhas são feitas para mostrar que a hanseníase tem cura e medidas são tomadas para erradicar a doença no Brasil, porém, os pacientes que têm essa doença ainda são muito estigmatizados e a maioria tenta ao máximo esconder o problema.
Não é minha intenção encerrar esta matéria com uma lição de moral, mas desde o momento em que iniciei minha pesquisa sobre a hanseníase, aprendi muita coisa sobre a doença que antes nem fazia ideia e deixei vários preconceitos para trás.
É preciso desmistificar a hanseníase, entendendo que trata-se de uma doença do corpo, passível de ser tratada e curada, e não uma doença do espírito, como quiseram muitos em tempos nem tão remotos. Não há mistério algum rondando essa patologia, há, sim, um invólucro de preconceitos e ignorância construído socialmente, mas que pode ser revisto e desconstruído. Cabe à mídia comprometida com o avanço humano e social apresentar os fatos, mostrar e detalhar o que esta doença pode ou não causar.

Editado por Gabriela Titon

Fotos: Anita Hoffmann


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* Matéria produzida durante o segundo semestre de 2011 na disciplina de Pesquisa em Comunicação no 4º Ano do Curso de Jornalismo da Unicentro.

Um comentário:

  1. muito bom...amanha vamos fazer um encontro de filhos na igreja em Piraquara as 16 horas, muitas historias e debates ocorreram
    Artur

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