segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Vade retro


Leandro Povinelli

“O homem de cáqui perambulou entre as ruínas. O Templo de Nabu. O Templo de Ishtar. Analisava as vibrações. No palácio de Assur-banipal, estacou. E então lançou um olhar de soslaio a uma estátua de pedra calcária que se avolumava in situ: asas hirsutas, garras nas patas, pênis bulboso, saliente, curto e grosso, e uma boca tensa, arreganhada num esgar de riso feroz. O demônio Pazuzu. Súbito esmoreceu. Sabia. Vinha vindo. Olhou a poeira. Sombras Aceleradas. Ouviu surdos latidos de matilhas de cães selvagens vagueando pela periferia da cidade. O globo solar já começava a se por no horizonte. Baixou as mangas da camisa e abotoou-as, enquanto se levantava uma brisa tiritante. Do sudoeste. Apressou-se a tomar o rumo de Mosul e de seu trem, o coração confrangido pela gélida convicção de que em breve teria de enfrentar um velho inimigo”.
Assim termina o prólogo do livro O Exorcista, escrito por William Peter Blatty em 1971. Dois anos mais tarde, em 1973, o filme homônimo, baseado no livro, chegaria aos cinemas, popularizando um tema que, até hoje, a ciência não consegue explicar com exatidão.



“O exorcismo visa expulsar o demônio ou livrar a pessoa da influência demoníaca. Isto acontece pela autoridade espiritual que Jesus confiou à sua Igreja. Bem diferente é o caso da doença, sobretudo a psíquica, cujo tratamento depende da ciência médica. É muito importante verificar antes de celebrar o exorcismo se trata-se da presença do maligno ou se é apenas uma doença”, explica o padre Jorge Morkis, sacerdote há quase 50 anos e eleito exorcista oficial da arquidiocese de Curitiba.
Nascido na Polônia e radicado no Brasil há 40 anos, Morkis explica que os padres exorcistas já nascem com a vocação, mas precisam esperar um chamado para que a função possa ser desempenhada da maneira correta. “No meu caso, tudo começou quando vi um jovem cometer suicídio dentro de uma igreja. Eu precisava entender o que estava acontecendo, se havia a presença ou não de espíritos malignos. Foi então que comecei a me dedicar aos estudos do exorcismo”.
O primeiro relato de um ritual católico de exorcismo foi escrito por Tertuliano, um apologista cristão que viveu entre os séculos 2 e 3. Porém, somente por volta do ano 500, a Igreja publicou a primeira instrução oficial de como realizar o ritual no documento Statuta Ecclesiae Latinae. Hoje, o ritual de exorcismo faz parte de um conjunto de textos denominados Rituale Romanum e, em 2004, a Congregação para a Doutrina da Fé, um dos órgãos da Igreja, ordenou que cada diocese designasse seu exorcista “oficial”. Para poder treinar e orientar os párocos, em 2005, a Associação Internacional de Exorcistas, criada por sacerdotes italianos, organizou o primeiro curso de nível universitário na área, em Roma. No currículo, constam aulas de teologia focada em demônios, medicina, psicologia e sociologia dos cultos satânicos.
Quando falamos da velha briga entre ciência e religião, Morkis também tem uma opinião formada. “O espírito é invisível, como o vento. Todos nós sabemos que o vento existe quando a folha farfalha. Sabemos quando tem espírito ruim. Para quem acredita em paranormalidade, tudo é paranormal. Quer-se explicar cientificamente as manifestações espirituais. Se a pessoa fala outra língua sem estudar, dizem que quando ela estava no ventre sua mãe teve contato com um professor, passando o conhecimento para a criança. O demônio sabe falar todas as línguas. Eu tenho um argumento para os psiquiatras, médicos e psicólogos. Por que a oração faz melhorar? Eles dizem que é uma sugestão, um placebo. Eu digo que não”.
No entanto, segundo a Igreja Católica, apenas 3% dos casos de possessão podem ser levados a sério. Para isso, é importante observar todos sintomas e saber diferenciá-los de possíveis patologias. “Força anormal, falta de higiene e cuidados com o próprio corpo, conhecimento de idiomas desconhecidos e/ou línguas mortas, blasfêmias, heresias e cropolalias são recorrentes em pessoas possuídas”, afirma Morkis. Além disso, o padre ainda aponta outras características marcantes em pessoas possuídas. “Tudo o que é de Deus, as imagens, as cruzes, água benta... Essas pessoas que estão com o maligno presente simplesmente não aceitam, não suportam. Rejeitam totalmente. Nunca vi, mas também existem os que levitam. Não me admiro com nada. Tudo pode acontecer. Tem quem sinta o inimigo com imagens, vozes, cheiros. Há fenômenos estranhos, mas não é explícito como no filme O Exorcista. A natureza do demônio é se esconder. Faz tudo para que se acredite que não existe. E em muitos casos, consegue”.
“Karras abriu a porta, e quase recuou ante a lufada de mau cheiro e frio gélido. A um canto do quarto, Karl, encolhido numa cadeira, de jaqueta verde oliva de caçador, já desbotada, estava virado para Karras, na expectativa. O jesuíta lançou logo um olhar ao demônio na cama. Os olhos faiscantes tinham-se fixado atrás dele, no corredor. Encaravam Merrin. Karras aproximou-se do pé da cama, enquanto Merrin se dirigia lentamente, alto e ereto, para o lado. Deteve-se ali, baixando os olhos para o ódio. Uma quietude sufocante pairava no ar. Regan passou então a língua voraz, enegrecida, pelos lábios rachados e intumescidos. O barulho foi idêntico ao de uma mão alisando um pergaminho amassado. O velho sacerdote ergueu a mão e traçou o sinal da cruz sobre a cama, repetindo depois o gesto pelo quarto todo. Voltando-se, tirou a rolha do vial de água benta. Merrin ergueu o vial e a cara do demônio ficou retorcida. Merrin começou a aspergir. O demônio esticou violentamente a cabeça, enquanto a boca e os músculos do pescoço estremeciam de raiva”.
Jorge Morkis diz que é necessário ter muita coragem para realizar os rituais. O padre afirma que já passou por maus bocados e que, apesar de alguns casos serem puramente patológicos, o exorcista crê na existência de espíritos, tanto os bons quanto os maus. “Uma vez me contaram que uma possessa ficava gritando ‘matem o padre Jorge, matem o padre Jorge!’. Nessas horas o medo pode aparecer, mas confio e acredito em Deus, sei que estou bem protegido por Ele. Os exorcismos realmente funcionam. Espíritos maus existem, e eu quase toda semana falo com eles. Esta é a realidade”.
Sua rotina de atendimentos é tão diabólica que nos primeiros meses deste ano o padre acabou acamado por um acidente vascular cerebral. “Eu disse, ele quer me derrubar”, avisa, como se falasse de um vizinho do condomínio. Mesmo adoentado, padre Morkis continua dando expedientes diários na Livraria Nossa Senhora do Equilíbrio, no Centro, onde abençoa e aconselha inúmeras almas atormentadas. Algumas lhe consomem poucos minutos. Outras, um ano inteiro. “Responder quantos exorcismos eu já fiz beira a confissão. Não quero anotar. Foram centenas. Exorcismo é bênção. As pessoas vêm mais de uma vez para receber, mas esquecem que em qualquer contato com o maligno volta tudo de novo. O pecado, o ódio, a raiva e a falta de perdão abrem a porta para o mal. É isso. O demônio existe. E é pior do que pintam. Não é como o chifrudo. É um monstro. Se o víssemos, morreríamos”.


“Karras sentiu-se mal. Depois o pêlo de seus braços começou a se eriçar. Com lentidão de pesadelo, aos poucos, a cabeça de Regan foi virando, girando feito um boneco, rangendo com o som de mecanismo enferrujado, até que o hediondo e cintilante branco daqueles olhos espantosos fixou-se nos dele. A cabeça voltou-se lentamente para Merrin. Karras olhou cautelosamente em torno, à medida em que as luzes do quarto começaram a piscar, diminuir, e por fim a se amorteceram numa cor de âmbar fantasmagórica, palpitante. Estremeceu de frio. O quarto estava mais gélido ainda. Uma batida abafada abalou o quarto. Depois outra. Por fim, repetiu-se continuamente, estremecendo paredes, soalho, teto, arrancando lascas, pulsando num ritmo pesado, como as batidas de um coração que fosse descomunal e estivesse condenado”.



“Os médicos observaram durante meia hora. Ela escoiceava. Rodopiava. Arrancava os cabelos. De vez em quando fazia um esgar, apertando as mãos contra as orelhas, como que para não ouvir um barulho súbito, ensurdecedor. Vociferava palavrões. Gritava de dor. Depois, por fim, arremessou-se de bruços sobre a cama, dobrando as pernas debaixo do estômago. E pôs-se a gemer coisas incoerentes. O psiquiatra puxou Klein para um canto. ‘Vamos aplicar-lhe um calmante’, cochichou. ‘Aí talvez dê para eu falar com ela’. O clínico concordou e preparou uma injeção de cinquenta miligramas de thorazina. Mas quando os médicos se aproximaram da cama, Regan pareceu pressenti-los, virando-se logo de costas e, enquanto o neuropsiquiatra tentava segurá-la, começou a dar berros estridentes de fúria malévola. Mordia. Agredia. Esquivava-se de suas mãos. Só quando chamaram Karl para ajudar foi que lograram mantê-la bastante imóvel para Klein aplicar a injeção. A dosagem resultou insuficiente. Injetaram mais cinquenta miligramas. Esperaram. Regan ficou dócil. Depois lânguida. Por fim, encarou os médicos com súbita perplexidade”.
Por mais que existam as divergências, o exorcismo continua sendo uma área fascinante para a ciência, visto que ninguém ainda possui uma explicação definitiva sobre alguns acontecimentos. De acordo com a psiquiatra Márcia Pereira Vertoni, vários casos não passam de distúrbios psíquicos, resolvidos com um tratamento médico adequado. “Muitas vezes, esses casos não passam de pessoas com múltipla personalidade, em que 30% das personas forjadas é sempre o demônio. Também podemos observar quadros de esquizofrenia, síndrome de Tourette ou força histérica que, apesar de não ser reconhecida pela medicina, são casos em que uma força extraordinária e anormal surge durante situações de muito estresse no paciente”.
Márcia, munida de um ceticismo impenetrável, não acredita em espíritos. Muito menos em demônios e possessões. “O demônio como conhecemos nada mais é do que uma adaptação de figuras mitológicas, como o deus grego Pã, por exemplo. Se é benéfico para a pessoa, acho ótimo que exista um apego religioso, algo em que ela possa se agarrar e sentir-se confortável. No entanto, vendo pelo lado científico, pelo lado psicológico, não conheço nenhum caso em que um paciente ‘possuído’ não pudesse ser tratado com uma medicação adequada. Nada contra quem acredita nessas coisas, mas, para mim, tudo tem uma explicação lógica, basta investigarmos com cautela”.




Editado por Gabriela Titon

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* Matéria produzida durante o segundo semestre de 2011 na disciplina de Pesquisa em Comunicação no 4º Ano do Curso de Jornalismo da Unicentro.

Guarapuava tem a primeira sala de recursos para superdotados da região

A primeira a oferecer educação especial aos alunos que se enquadram nesse perfil e que fazem parte da rede de ensino estadual

Morgana Nunes

Não é uma tarefa fácil. Vivemos inconscientemente buscando entender as nossas próprias especificidades, desejos e fraquezas que precisam ser melhorados. No entanto, gastamos boa parte de nossa vivência buscando algum ponto forte da própria personalidade, algo que nos faça luzir. Algumas dessas tarefas são incumbidas aos profissionais da educação, pois trabalham em cima das dificuldades e também das habilidades inteligíveis de cada estudante. Há muito tempo, existe o interesse por identificar pessoas talentosas, altamente capazes ou inteligentes, mas nas últimas três décadas isso tem aumentado. Pesquisas comprovam que são crescentes os investimentos em políticas públicas ligadas a programas especiais, que tenham como objetivo trazer progresso para a tecnologia, ciência, economia, através do reconhecimento e desenvolvimento de alunos com superdotação e altas habilidades em potencial.
A sala de recursos para pessoas com altas habilidades/superdotação foi criada em Guarapuava no final de maio deste ano e está localizada no Colégio Estadual Manoel Ribas. É a primeira da região a oferecer educação especial aos alunos que se enquadram a esse perfil e que fazem parte da rede de ensino estadual. Mas, antes disso, já existia a orientação da Secretaria de Estado da Educação para que o mesmo projeto fosse aplicado a outras cidades do Paraná, em Curitiba já existe desde 2005. Em Guarapuava, iniciou neste ano, mas alguns alunos foram avaliados previamente e aguardavam este atendimento. O projeto para a instauração da sala foi criado em março do ano passado, depois de devidamente sancionado, quatro alunos previamente avaliados começaram a receber o atendimento. O próximo passo foi dado pelo Núcleo Regional de Educação, responsável por convocar pedagogos, professores e demais profissionais capacitados em educação especial para dar início ao processo de avaliação e identificação desses alunos nas salas de aula da rede pública do Estado. Segundo a professora especialista em educação especial e coordenadora da sala de recursos com altas habilidades/superdotação, Nicéia Martim, o objetivo é fazer com que os alunos recebam atendimento psicológico especial, exercitem a convivência social e pesquisem sobre a própria área interesse, criando projetos que beneficiem a sociedade.
“ O trabalho na sala é fazer com que os alunos interajam entre si, objetivando que esse relacionamento com os colegas seja aplicado no dia a dia com diversas pessoas. Oferecemos mini-cursos e oficinas com o propósito de enriquecimento curricular. A sala funciona como ponto de encontro, algumas atividades precisam de espaços específicos para serem realizadas. Outro objetivo é fazer com que as áreas de interesse de cada um deles possam gerir um projeto com algum benefício social.”
Alunos com superdotação e altas habilidades também precisam da mesma atenção de uma educação especializada, com profissionais que saibam trabalhar de forma positiva os potenciais de cada um. Atenção esta que é dada também aos estudantes que têm dificuldades de aprendizado, hiperatividade, déficit de atenção, bipolaridade e demais transtornos que possam afetar a aprendizagem.
José Valdir Kukelcik, chefe do Núcleo Regional de Educação em Guarapuava, afirma que a criação de salas especiais para alunos com superdotação e/ou altas habilidades é de suma importância, porque eles precisam saber lidar com o perfil e as características desses alunos especiais. “A importância dessas salas multidisciplinares e multifuncionais é grande. Há tempos, existem salas para alunos com dificuldades cognitivas e da mesma maneira, precisamos oferecer educação de qualidade e diferenciada para alunos com perfil de superdotação. Eles precisam desenvolver seus talentos e habilidades com liberdade e respeito, assim como os colegas de sala de aula”.

Superdotação “ em cheque”
A cultura é um dos principais fatores que influenciam na identificação de pessoas com superdotação e/ou altas habilidades, não somente ela, mas outros como momento histórico, contexto político e social também influenciam no perfil de pessoas que detêm essas características. A variedade de termos e definições acompanhadas de preconceitos e mitos, trazem ainda mais dificuldades para estudo e ampliação do entendimento ao superdotado. Apesar dessas contrariedades, pesquisadores entram em consenso ao dizer que os superdotados são pessoas com alta habilidade cognitiva, são criativos, preocupados com a ética, detêm características de independência e curiosidade intelectual. Assim como todo ser humano, os superdotados não fazem parte de um grupo homogêneo, fatores ambientais relacionados ao sistema educacional, à família, à religiosidade e aos valores socioculturais tornam o conceito complexo e multifacetado.
Cíntia Ribeiro é pedagoga, psicóloga e integra a equipe de Educação Especial do Núcleo Regional de Guarapuava. É umas das responsáveis pela aplicação da avaliação psicológica e educacional de alunos com superdotação, uma fase de procedimentos que assegura de maneira eficiente e capaz de realizar a identificação de estudantes que possuem este perfil .
"Na verdade, chamamos de psicoeducacional, pois envolve o contexto escolar destes alunos e das escolas a qual eles fazem parte. Existem formulários que os professores, pais e próprio aluno preenchem com orientação da pedagoga da escola".
Após essa fase, ainda segundo Cíntia Ribeiro, é solicitada a autorização da família e do aluno para que a responsável pela sala de recursos, a professora Nicéia Martins, tome a frente do próximo passo de avaliação.
"Depois dessa fase, é feita a testagem pedagógica, que engloba testes formais e informais. Posteriormente, é feita a avaliação psicológica que analisa questões emocionais e o potencial intelectual dos alunos. Por último, é realizada uma reunião de devolutiva para a escola e a família".
O interesse em estudar a superdotação e ou altas habilidades é grande, há vários pesquisadores e teóricos para falar sobre assunto. A teoria utilizada para exercer os trabalhos nas escolas da rede estadual da região de Guarapuava é a dos Três Anéis, do psicólogo educacional Joseph Renzulli. Em resumo, ela trata de três bases necessárias a serem aplicadas sobre o conceito de superdotação. “A teoria dos Três Anéis é composta pelas seguintes características: criatividade, habilidade acima da média e envolvimento com a tarefa. Segundo essa teoria, temos basicamente dois tipos de alunos: acadêmicos - que se dão bem e têm facilidade com os conteúdos escolares, geralmente tem notas excelentes em todas as disciplinas; e o produtivo/criativo, que apresentam uma habilidade acima da média nas questões artísticas, culturais, esporte, música, dança, teatro", explica a psicóloga e pedagoga Cíntia Ribeiro.
A OMS (Organização Mundial da Saúde) computa que cerca de 3,5% a 5% de toda a população do mundo possui alguma categoria de superdotação e/ou alta habilidade. É fundamental compreender quem são e como formá-los para que se desenvolva uma educação humanitária de igualdade e respeito.

Super-Pais
“Eu quero que meu filho seja muito feliz e saiba usar o próprio talento de forma sábia. Lenon, aos três anos, já tinha um vocabulário avançado para a idade, lia placas, outdoors, mais textos pelas ruas, mas eu achava que era por associação a cor ou imagem. Aí, fiz um teste em casa, dei alguns trechos de livros e ele leu perfeitamente. A partir daquele dia, eu me tornei pesquisador”. Luciano Ortiz é pedagogo e pesquisa superdotação, mais especificamente sobre vantagens e desvantagens aceleração escolar para superdotados.
O papel que os pais desempenham na vida dos superdotados é de fundamental importância, promissor e inegável, eles precisam acompanhar fase a fase do desenvolvimento do filho. A parte emocional é trabalhada em conjunto com os professores com o objetivo de dar apoio e segurança no desenvolvimento dos talentos. O aluno com superdotação acaba sendo cobrado de muitas maneiras, como se já estivesse pronto e soubesse de tudo. Apesar de serem estimulados por desafios intelectuais, esses alunos precisam ser devidamente orientados para que vivam cada fase da vida saudavelmente .
Para Josué Becher da Silva, empresário e pai da Letícia e do Richard, a avaliação psicológica acompanhada do resultado de superdotação, não alterou em nada o comportamento e a educação oferecida aos filhos dentro de casa e na escola. "Para mim, eles continuam sendo eles mesmos. Em casa foi sempre tranqüilo, dedicados e estudiosos. Depois do laudo com superdotação tudo continuou na mesma, o ensino é o mesmo . Não é porque eles são superdotados que a vida vai ser mais fácil, isso é mais um fator para que tudo isso seja ainda mais estimulado".
Na sala para pessoal com altas habilidades e superdotação, o que pudemos perceber é que os alunos foram estimulados desde de pequenos e antes mesmo de entrar na escola. Josué é um apaixonado por música e compartilhou com seus filhos, ainda pequenos, a mesma paixão. Além disso, ensina o ofício musical em oficinas para os colegas de seus filhos. Já Luciano, faz oficinas e acompanhamento pedagógico para os adolescentes e traz contribuições teóricas e científicas da área.

Superdotados
A sala de aula chama a atenção da criançada que está fora dela. A curiosidade é bastante perceptível, algumas passam e olham atentamente o que está ocorrendo lá dentro, elas sabem e sentem que ali estão pessoas especiais. Gênios em potencial, alguns com veia artística, outros para a lógica dos números, alguns para filosofia da linguagem, com sede de alcançar o conhecimento pleno, uma parte deles preferem o estudo da política e da antropologia. São adolescentes com nível de ensino fundamental e médio, juntos somam doze, mas suas ideias e projetos poderiam somar salas de aulas inteiras. O propósito de estar ali é porque se tratam de pessoas com criatividade acima da média, de olhar crítico e com conhecimento que vai além do know how.
Todas as segundas e sextas, eles se encontram na sala 141 do Colégio Estadual Manoel Ribas. Ali, dividem seus planos, ideias, conhecimentos, mas acima de tudo se divertem e se entendem. Renata Vitória Silvestre tem 11 anos e é ainda pequenina para seus anseios intelectuais. "O conhecimento vem de você, sempre dou o melhor de mim e por isso vou bem nas aulas e isso, de certa maneira, traz um pouco de exclusão. Tenho um amigo de 15 anos que gosta de conversar comigo porque eu entendo o que ele quer dizer, eu levo outras olhares para aquilo. Agora estou lendo sobre Revolução Cubana, li a bibliografia do Che Guevara e gostei bastante, eu gosto de saber sobre a política e os conflitos que ela gera".
Não podemos esquecer que falamos de seres humanos e as características variam e se diferenciam baseadas nas questões históricas, culturais, sociais, políticas, econômicas e biológicas. Julia Savian é a mais alegre e falante do grupo, ri à toa e se diverte com os jingles e piadas da internet. Gosta de assuntos ligados a bruxaria, antropologia da religião e mais alguns conglomerados e considera que o estudo e a competição podem desenvolver a superdotação. "Todos poderíamos ser considerados com altas habilidades, a competição, a leitura e a busca pelo conhecimento são bons modos de se buscar isso. Dar o melhor pode ocasionar a superdotação. Eu gosto de antropologia da religião, tenho um pé na ufologia, também tenho curiosidade por microbiologia. Literatura é uma das minhas paixões e para mim Shakspeare era um superdotado. Me inspiro na Maria Judia, uma mulher que viveu pelos princípios da magia, da religião e da antropologia.”
Oziel Carrasco é ateu e gosta de estudar história e cultura nórdica, mais especificamente sobre runas anglo-saxônicas. Seu estilo musical preferido é o black metal britânico, ele tem aversão a cultura norte-americana. “O meu projeto aqui para a sala de recursos é traduzir uma obra de John Ronald Reuel Tolkien para runas anglo-saxônicas. Eu sou ateu e a minha família é evangélica, as vezes temos alguns conflitos de ideias, mas a gente se respeita. Tenho uma revista que fala de Stephen Hawking, e diz que quando estava na escola, ele ainda não era um aluno muito diligente, por assim dizer. Ele chegava a faltar com uma certa frequência. Uma vez ele tinha que fazer um trabalho, de física e faltava bem pouco tempo para entregar. Aí ele resolveu faze-lo e, resolveu com uma grande facilidade e rapidez, mesmo tendo faltado em várias aulas. Isso é um tanto quanto excepcional, creio que ele tenha superdotação”.

Super Equipe
Quatro mulheres comandam a seleção e o trabalho de difusão da sala. Gianna M.Cordeiro Frutuoso, pedagoga, professora de educação especial e coordenadora da equipe de Educação Especial do Núcleo Regional de Guarapuava, Cíntia Ribeiro, além de ser pedagoga e especialista é psicóloga; Jocilaine Gniech professora de educação física e especialista em educação especial; e Nicéia Martim especialista em educação especial e responsável pela sala de recursos para pessoas com altas habilidades e superdotação.
Alguns alunos que já freqüentam a sala foram beneficiados com bolsas de estudos da Unicentro (Universidade Estadual do Centro-Oeste), além disso, a instituição é parceira do projeto dando suporte e incentivo ao conhecimento acadêmico. Para o ano que vem, a expectativa é intensificar ainda mais o trabalho, trazer novos alunos com outras ideias e planos. Segundo José Valdir Kukelcik, o propósito é dar mais ênfase na capacitação de profissionais da educação. “Não podemos perder de vista que a educação especial precisa de ajustes e de intensa renovação. É uma área com muitas novidades e pesquisas diárias e a capacitação desses profissionais é muito importante. Pretendemos intensificar ainda mais o nosso trabalho de especialização.”
Para Cíntia, o convívio com os alunos é um aprendizado diário que exige muito estudo, dedicação e sensibilidade. “Muitos alunos sentem-se incompreendidos, desanimados com os estudos, autoestima relativamente baixa, dificuldade em se aceitar e aceitar o outro. Por vezes, quando são questionadores, os adultos tendem a se irritar com eles, o que provavelmente cause um comportamento de frustração”.
São alunos que frequentam um serviço da educação especial justamente por ser necessário este olhar mais específico, que enriquece e que suplementa a escolarização do ensino comum.

Editado por Gabriela Titon

Fotos: Morgana Nunes





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* Matéria produzida durante o segundo semestre de 2011 na disciplina de Pesquisa em Comunicação no 4º Ano do Curso de Jornalismo da Unicentro.

Na trajetória, mais espinhos do que flores

Gabriela Titon

Acordar sem a certeza de ter algo para comer no jantar. Abrir os olhos e enxergar um mundo desbotado, enquanto a consciência analisa se vale a pena continuar tentando sair de tamanho caos. Saudade de algo que nunca se teve, sonhos interrompidos já na infância, desejos reprimidos. A falta de sorte de morar em um local abandonado e esquecido. As oportunidades escassas e a necessidade de se sustentar, ao invés de obter uma formação educacional. No bairro Jardim das Américas, não faltam histórias de quem apenas sobrevive (ou "sub-vive"), privando-se, até mesmo, de itens básicos ao bem-estar de um ser humano. Aliás, estar bem é um sentimento raro para pessoas que encontram pela trajetória mais espinhos do que flores.
Talvez seja mais fácil aceitar a situação e ignorar a possibilidade de tentar outra vez, pensando que nada vai mudar. Então, se é assim, para quê o esforço? O conformismo toma conta, quem sabe por não se ter mais forças para lutar, ou por acreditar que desse jeito está bom. "A gente vai vivendo, sabe como é". Doloroso é perceber que o ciclo se repete a cada geração, com algumas excessões. Parece até um déja vu. O que muda são os personagens, já que o sofrimento dos netos foi vivenciado pelos avós, em maior ou menor intensidade.
Um lugar sem esperança, que padece com necessidades não apenas materiais, mas também afetivas. Falta atenção e sobra carência. Numa manhã de sábado, logo cedo, já se ouviam músicas sertanejas em algumas moradias – som que perdurou até o horário do almoço. Casas emendadas como se fossem retalhos de tecido costurados, uma delas, ao lado de uma igreja, estava sendo pintada por dois rapazes. Quintais e calçadas tomados por diferentes vegetações: na maior parte, matos abandonados; em outros locais, flores colorindo a paisagem; e ainda pequenas plantações de milho ou hortas.
O tráfego de carroças e cavalos é constante: os materiais recicláveis chegam ao bairro afastado a cada minuto. As ruas de terra que empoeiram as residências permanecem iguais há anos, apenas algumas são de pedra ou asfaltadas. O transporte coletivo, mesmo com um valor alto de passagem (R$ 2,30), continua sendo a alternativa para se chegar ao Centro. O posto de saúde atende a população como pode, às vezes com a falta de médicos e medicamentos. A escola municipal Dionísio Kloster Sampaio educa enfrentando inúmeras dificuldades – não só materiais. A infraestrutura ausente e os problemas sociais são desafios estampandos nos olhares apreensivos de quem passa pelas ruas ou olha o horizonte pelas janelas, como se estivesse à procura de um novo caminho.
O desemprego é um dos problemas com os quais a população do bairro convive. Fatores como baixa escolaridade e idade avançada influenciam na dificuldade de se conquistar um emprego formal. A falta de qualificação faz com que muitos procurem alternativas na informalidade, trabalhando sobretudo como catadores de material reciclável. Outros, migraram do campo para a área urbana e acabaram sendo vítimas do êxodo rural, permanecendo em situação igual ou pior do que anteriormente. Trabalhar recebendo por dia na realização de serviços braçais é uma das opções encontradas principalmente pelos homens. Contudo, em época de colheita de batata, por exemplo, não há distinção entre eles e elas, todos devem prover o sustento da família. Existem mulheres que viram donas de casa para cuidar dos filhos pequenos. Há, ainda, quem possuía um emprego e teve de parar por determinada doença. A questão econômica do município também interfere ao não proporcionar emprego suficiente para toda a demanda existente de pessoas precisando de um serviço. As causas que geram e mantém o desemprego são inúmeras, assim como o sofrimento é imenso. A coragem, entretanto, fala mais alto para que ao menos se tente vencer as batalhas diárias.

Altino, o cavalo e a aposentadoria

Aos 57 anos, Altino Acir Machado fica em casa cuidando da esposa adoecida. Sai para catar material reciclável, vez ou outra, porque não pode deixá-la sozinha. Está desempregado há mais de três anos. Antes, trabalhava em serrarias, mas foi obrigado a parar por vontade do destino, quando sua mulher sofreu um AVC (acidente vascular cerebral) e se tornou dependente de um acompanhante que a ajudasse constantemente. "Quando ela estava boa e saia comigo, ela ajudava. Era trabalhadora, mas depois do derrame, não consegue mais fazer nada. Se eu sair de casa, até fome ela passa, porque não consegue fazer comida. Só saio lá de vez em quando para catar". Além das sequelas, a companheira possui transtornos psíquicos que Altino não sabe especificar. Ela toma remédios fornecidos pelo Caps (Centro de Atenção Psicossocial), mantido pelo município.
Estão no Jardim das Américas há aproximadamente 30 anos. Os dois moram sozinhos em uma residência que agora é de material. Mesmo assim, as condições são precárias. Há cerca de seis anos, quando ainda era de madeira, foi queimada. Altino estava no distrito Guairacá ao receber a notícia. "Cheguei aqui, não tinha mais nada. Destruiu tudo, nossos documentos queimaram também. Fiz um barraco até arrumar a casa. Fui construindo por conta, ganhei tijolos de um patrão, na época. Os amigos ajudaram, mas a prefeitura não".
Com um terreno grande, o quintal abriga uma horta conservada por Altino para consumo próprio. Ao lado, uma pilha de recicláveis e a carroça castigada pelo tempo. Bom de papo, ele explica que os amigos catadores doam materiais para que possa vender quando juntar uma quantidade considerável.
Há alguns anos, o casal era beneficiário do programa Bolsa Família, do Governo Federal. "Mas o cartão foi perdido, acabou sumindo e nunca mais fomos atrás. A gente não tem nada. Mas para nós dois, qualquer coisinha dá. Eu só acerto minha água, a luz já está bloqueada faz tempo". As palavras de Altino comprovam o que é perceptível em uma visita. "Tem dias que as coisas faltam. Não dá pra dizer que tem tudo que uma casa precisa". O maior desejo é receber a aposentadoria. "Sou uma pessoa sossegada, não gosto de pedir ajuda. Mas se pudesse pedir alguma coisa, queria me aposentar".
Ao todo, tiveram cinco filhos. Um deles, morreu aos oito anos. O outro, foi assassinado há seis meses, "porque o pessoal novo não se considera muito", segundo o pai. Atualmente, os três filhos moram em fazendas. "São todos trabalhadores. Não tem como pedir ajuda para eles, porque eles também precisam". Quando questionado se já tinha netos, respondeu com uma sorriso que mostrava os dentes descuidados: "Quantos netos eu tenho? Não vou nem te contar, já são uns 12".
Enquanto conversava, Altino olhava para o cavalo, do outro lado da rua, em um terreno baldio. "Uma vez, levaram o cavalo embora, aí fui na rádio e consegui pegar de volta o Tordilho". A amizade entre os dois e o apreço pelo animal são expressados por uma frase triste e, ao mesmo tempo, bonita de se ouvir: "Só confio no meu cavalo e na minha carroça até eu me aposentar".

Tatiane e a mudança de vida

Simpática, Tatiane Silva Souza, de 23 anos, estava na casa da mãe com as duas filhas, uma de cinco e a outra de dois anos. A maior, com atitude, expressão e beleza dignas de uma futura modelo. A mãe não trabalha para cuidas das crianças, pois não tem com quem deixá-las. Tatiane casou há sete anos, quando tinha apenas 16, fato que espanta alguns e é corriqueiro para outros.
"Somos em cinco irmãos. Nasci na fazenda, sempre morei lá. Mas meu marido foi mandado embora faz um mês, aí viemos para a cidade. Ele está trabalhando por dia. Tem dias que dá uns quarenta reais. Só que um dia tem trabalho, o outro não tem... Agora, está fazendo um serviço em Pinhão, com lavoura, que meu pai arrumou. Ele planta e colhe, é a única coisa que entende, então tem que trabalhar com isso".
Tatiana relata que o casal está construindo uma casa no loteamento Feroz. Eles haviam se mudado há uma semana, mas ainda faltava terminar muita coisa, nas palavras dela. No primeiro mês em que estão experimentando uma nova vida, os parentes ajudam como podem. "Na fazenda, a gente não pagava luz e água, por exemplo, e aqui precisa pagar. Se não estivessem ajudando, ia faltar alguma coisa. Só com o dinheiro do meu marido, não ia dar".

Maria, Joel e as crianças

Maria de Aparecida Souza, de 45 anos, estava sentada na área de chão batido enquanto conversava e cuidava de dois netos que moram junto, um ainda de colo e o outro já caminhando. Ela tem dois filhos e o marido, mais dois. Um filho dela, de 14 anos, tem transtornos psíquicos e toma remédios concedidos pelo Caps. Ele nasceu prematuro, aos sete meses, como conta a mãe. Ela não sabe, entretanto, qual é exatamente a doença do filho. "Ele é bastante bravo, nervoso. E não vai muito bem na escola". O menino está na quarta série do ensino fundamental, pois reprovou algumas vezes. "Mas as mulheres falaram que está difícil ele passar, porque não estuda direito". Naquela semana, Maria havia levado o garoto para uma avaliação médica. "Mas eles [os médicos] não explicam direito o que é". Se pudesse fazer um pedido, seria receber ajuda para o filho. "Tem muita coisa que eu queria que mudasse, mas é difícil. Se eu conseguisse pelo menos um auxílio para ele, era melhor". Perguntada sobre as necessidades da família, Maria disse: "Faltar alguma coisa, sempre falta. A gente compra no bar, depois paga quando tiver dinheiro".
Atualmente, Maria cuida da casa, porque sofreu um AVC e não consegue trabalhar. Já foi empregada doméstica e funcionária de madeireira. "Fiquei três meses na cadeira de rodas. Agora, não posso fazer muita coisa. Até tenho vontade de voltar a trabalhar, mas tenho medo de não aguentar. Tenho problema de coluna, de colesterol alto e pressão alta. Quando me ataca a pressão, fico muito ruim". Ela toma quatro remédios por dia, que são fornecidos pela prefeitura. "Tomava também um remédio para dormir, que comprava por conta. O médico receitou porque eu não dormia e me dava vontade de chorar". Nessa hora, os olhos marejados de dona Maria demonstraram a angústia de uma vida toda.
Ela mora na mesma residência há 20 anos. O marido, Joel Brasil da Silva, há 17. "Ele se separou da mulher dele e a gente se amigou". Joel, de 47 anos, trouxe consigo duas meninas. "A mãe não pôde ficar com a guarda. Ela fugiu". Uma delas, como o pai contou, foi abusada sexualmente no município de Cantagalo. "O cara estava preso. Não sei se vão soltar ou não". O pai e as duas filhas estudam à noite. Ele conta que leva as meninas e aproveita para também aprender. "É muito longe, então tem dias que não vamos porque não tem gasolina no carro".
O homem está desempregado e trabalha por dia há algumas semanas. Ficou no último emprego, como laminador, durante três meses. "Mas deu um problema com o gerente e acabei saindo". Joel veio para a área urbana de Guarapuava há 27 anos. "Aqui tem mais serviço, nos matos é difícil". Agora, está procurando emprego, mas, segundo ele, não está fácil. "Eu tinha carroça e mexia com lenha antes também, mas agora estou meio quebrado. Mexo com todo tipo de serviço que aparece. Quando tem algum serviço, tem que fazer". Joel, que afirma faltar bastante coisa em sua casa, não irá se aposentar. "Não trabalhei com carteira assinada. Só tenho cinco meses de carteira, porque sempre fiz trabalho braçal e nunca foi registrado nada".

Leoni e os trabalhos do marido

Varrendo o pátio de terra e pedra brita, Leoni Ferreira Miranda, de 52 anos, contou um pouco sobre sua história. Ela é dona de casa, mas ajuda o marido a catar recicláveis. Ele trabalhou em várias empresas como motorista, mas não tem emprego fixo há dois anos. "Agora, está lidando com uma casa, como pedreiro, porque sabe construir. Ele pegou a casa pra fazer por dois mil e quinhentos reais. Essa semana, meu filho que mora aqui foi ajudar ele". Antigamente, o casal trabalhava recolhendo materiais no lixão. "Ganhava mais, dava mil reais por mês, dava pra viver bem com isso. Mas fecharam o lixão e a gente tem que ir pro Centro catar. Tenho medo de ir sozinha, só vou com ele junto. Agora, dá bem pouco por mês".
O marido faz serviços por dia, para ajudar na renda familiar. "Quando arruma esses bicos, vai fazer. Ele procura serviço, mas está difícil. Ele tem 52, nessa idade é mais difícil conseguir". Leoni contou que ele foi na Agência do Trabalhador há algumas semanas, porque havia uma vaga para motorista. No entanto, a falta de estudo falou mais alto. "Eles queriam que tivesse o segundo grau completo, e ele não estudou, porque começou a trabalhar criança pra ajudar a família. Eu só tenho até a terceira série também". Ela nasceu em Laranjeiras do Sul, mas veio para Guarapuava há muitos anos, morar no interior. "A gente morava numa serraria, eu e meu marido. Aí terminou o tempo da madeireira e nós viemos pra cá, pra cidade. No acerto da firma, compramos esse lote e fizemos a casa".
As ocupações temporárias são alternativas para se conseguir um pouco mais de dinheiro. Em meados de dezembro, o casal começará a trabalhar na colheita de batata, que prossegue até junho do próximo ano. "Quando é safra boa, a gente ganha bem. Se você catar doze sacos, ganha seis reais. É pouco. Enfrentar esse solão, é difícil". O marido também é tratorista no campo, recebendo por dia. A casa simples da família foi construída pelo marido. Contudo, a obra ainda precisa ser concluída. "Queria um emprego pro meu marido, pra conseguir terminar a nossa casa". No quintal, uma horta útil para fazer o almoço. "Cuido da minha hortinha aqui, porque não dá pra ficar comprando".
Leoni fala, com orgulho, que não quer pedir auxílio. "A prefeitura não ajuda e eu nunca vou pedir também. A gente recebe o Bolsa Família das crianças. A minha filha que mora em Foz do Iguaçu ajuda a gente quando pode, mas ela está construindo uma casa também, e não está fácil". Três filhos estão estudando, mas precisam ir ao bairro Aeroporto, porque a escola do Jardim das Américas não oferece ensino médio. "Em dia de chuva, eles perdem aula, porque vão a pé e é longe".

Vídeo de Gabriela Titon

Hanseníase: desconstrução de um estigma

Anita Hoffmann

Exclusão e silêncio. No passado, esse era o único destino dos portadores da lepra, hoje, chamada de hanseníase. Os “leprosos” eram considerados seres impuros, indignos e, no imaginário social, a doença estava diretamente ligada à sujeira e ao pecado. O estigma, muito mais do que físico, era psicológico e, por mais que a cura já tenha sido encontrada, a falta de conhecimento ainda gera um grande preconceito em relação à doença. A maior prova disso é o fato de nenhum portador da hanseníase ter aceitado conceder entrevista, mesmo sabendo que seus nomes não seriam divulgados.
A hanseníase é considerada a doença mais antiga do mundo; um esqueleto de mais de 4000 anos apresentando sinais da enfermidade foi encontrado na Índia e registros egípcios também apresentam relatos sobre a doença. Na Bíblia, encontram-se diversas referências à lepra, ora relacionadas à doença real, ora erroneamente ligadas a outras doenças dermatológicas. Entre os hebreus, o diagnóstico da lepra não estava a cargo dos médicos, mas sim dos sacerdotes. A enfermidade era considerada uma evidência de pecado, um castigo divino. Os leprosos deveriam abandonar suas casas e resignar-se à solidão. Já no Novo Testamento, existem dois trechos que citam que Jesus demonstrou compaixão e carinho aos leprosos, curando suas feridas.
A denominação “hanseníase” surgiu em 1874, em homenagem ao norueguês Gerhard Hansen, que descobriu o bacilo Mycobacterium leprae, microorganismo causador da doença.
O bacilo de Hansen tem predileção pela pele e por seus nervos periféricos. Ao atacá-los, dificulta os movimentos dos pés, das mãos, dos olhos e causa amortecimentos. Segundo a dermatologista e hansenologista Iara Rodrigues Vieira, do Ambulatório Municipal de Pneumologia e Dermatologia Sanitária de Guarapuava, a perda de sensibilidade é um dos fatores mais preocupantes dos portadores da hanseníase. Como eles deixam de sentir dor, acabam batendo certas partes do corpo e fazendo lesões e feridas. “Reclamamos da dor, mas senti-la é algo maravilhoso, pois prova que estamos com reflexos em nosso corpo. Quem tem hanseníase, por exemplo, pode colocar a mão em uma chapa quente que não vai sentir nenhuma dor, porém, fará uma grave queimadura”.
A médica explica que a hanseníase é a doença crônica que apresenta maior tempo de incubação: de dois a cinco anos. “Algumas pessoas até já apresentaram a doença depois de dez anos”. Apesar de ter cura, quanto antes diagnosticada e tratada, mais facilmente será eliminada do organismo.
Existe uma ideia errada de que a hanseníase pode ser transmitida por contatos físicos, como abraços e apertos de mão. Muitos chegam até mesmo a acreditar que podem pegar a doença se sentarem no mesmo lugar que uma pessoa portadora sentou. Iara explica que a transmissão da hanseníase não é algo tão simples e apenas acontece com contatos mais íntimos e prolongados. “A hanseníase é transmitida pela tosse e espirro. Como é uma doença que precisa de uma carga bacilar muito grande para ser transmitida, a pessoa precisa ter um contato prolongado com o portador da hanseníase para pegá-la”.
O tratamento é oferecido de forma gratuita nos postos de saúde. Quem apresenta os sintomas da doença, que são manchas amortecidas pelo corpo, caroços que não coçam, dificuldades para pegar objetos, feridas na sola dos pés e bolhas nos braços e mãos, tem de ficar atento e procurar ajuda médica. De acordo com a dermatologista, todo o tratamento médico é oferecido pelo governo e os pacientes também têm acompanhamento psicológico para lidar com o problema. Quem tem poucas condições financeiras recebe atendimento de assistentes sociais e, caso seja necessário, recebe cestas básicas.
Motivada por histórias que ouvi de minha vó, Dona Edinê, escrevo esta matéria. Foi por ela que tomei o conhecimento, ainda criança, do passado obscuro de Guarapuava em relação à hanseníase e dos tratamentos desumanos que os portadores da doença tinham na cidade: eles eram tratados pela sociedade como cães sarnentos e viviam em uma localidade excluída da cidade, hoje chamada de Alto Cascavelzinho. Uma das histórias contadas por minha vó me causou grande choque: quando os leprosos vinham ao centro da cidade para fazer compras, a maioria dos estabelecimentos comerciais eram fechados; poucos aceitavam negociar com eles, por medo de pegarem a doença. Quando algum comerciante aceitava vender para essas pessoas, negociava apenas com moedas, pois, assim, acreditava que colocando os metais no álcool, poderia livrar-se da possibilidade de ser contaminado.
Beatriz Anselmo Olinto, professora do Departamento de História da Unicentro, pesquisou em seu doutorado sobre a lepra no Paraná, em especial, em Guarapuava. Seu trabalho deu forma ao livro "Pontes e Muralhas: diferença, lepra e tragédia no Paraná do início do século XX". Segundo Olinto, “a lepra é uma doença de manifestação lenta e prolongada que, até 1941, não conhecia nenhum tratamento comprovadamente eficaz”.
No final do século XIX e início do século XX, Guarapuava era uma das cidades que mais registrava casos de lepra no Paraná. Na realidade, até hoje ela ainda tem altos índices: segundo dados do Datasus (Departamento de Informática do SUS), Guarapuava é a segunda cidade paranaense com mais casos de hanseníase. A média é feita de acordo com o número de habitantes proporcionalmente a sua população. O surto da doença era tão grande que, por várias vezes, foi cogitada a construção de um leprosário para o isolamentos dos doentes.
Em seu livro, Olinto cita trechos do jornal O Guayra, que circulou em Guarapuava no final do século XX e na metade do século XX. Em 1898, foi discutido na Câmara Municipal sobre a necessidade de isolarem os doentes em um leprosário. Seria uma boa solução construí-lo na cidade, já que, além de existirem doentes guarapuavanos, pessoas de outras cidades também vinham “esmolar” aqui. Vale lembrar que na época ainda não existia nenhum tratamento eficaz para a doença e os países que possuíam muitos casos de hanseníase encaravam o isolamento como o cuidado mais eficiente e natural para evitar a transmissão.
Em 1899, a Câmara sancionou uma lei que previa que um leprosário fosse construído na região do rio Coitinho, porém, apenas os doentes já residentes no município poderiam “beneficiar-se” dele. Caso as obras não iniciassem no prazo de um ano, elas caducariam. Foi o que aconteceu. Segundo Olinto, o motivo de esse leprosário não ter sido construído foi a intenção de Guarapuava em querer incentivar a vinda de imigrantes europeus para a cidade. Isso traria progresso econômico e industrial. Caso a cidade continuasse apresentando grande número de “leprosos”, os europeus não a escolheriam.
Como Guarapuava deixou de se interessar na construção do leprosário, os recursos foram destinados a Piraquara, região metropolitana de Curitiba, onde foi construído o Leprosário São Roque. Fundado em 1927, São Roque era um lugar muito moderno para os padrões da época e oferecia aos seus pacientes atividades esportivas e culturais. A partir do estabelecimento desse leprosário, todos os doentes do Estado foram obrigados à internação. Não havia escolha. A eles era dito que, já que a doença ainda não possuía cura, era lá que eles deveriam esperar até o dia dessa grande descoberta. O bem coletivo prevalecia sobre a liberdade individual. O que antes fora um leprosário hoje é o Hospital Dermatológico do Paraná, referência no tratamento da hanseníase no Estado. Hoje, outros problemas dermatológicos também são tratados lá.
No passado, muitas histórias eram contadas e inventadas em relação aos leprosos. Edinê lembra que, quando pequena, sua mãe dizia para não aceitar balas de ninguém desconhecido, pois comentava-se que alguns leprosos lambiam os doces, embalavam novamente e ofereciam às crianças para passar-lhes a doença. Em seu livro, Beatriz também comenta sobre isso. Essas lendas urbanas eram criadas justamente para legitimar as ações de exclusão e expulsão dos doentes do município. Para grande parte da sociedade, essas pessoas eram tão cruéis que não bastava apenas ter a doença, era necessário transmiti-la para a maior quantidade de gente possível.
Até a década de 40, a Dapsona ainda não tinha sido descoberta e o tratamento ao qual os pacientes eram submetidos era feito com óleo de chamoulgra. O processo era bastante doloroso e o óleo era aplicado pelo médico com infiltração intradérmica ou tratamento de plancha. Este, além de causar dor intensa, também gerava pigmentação escura na pele dos “leprosos”.
Iara conta que hoje o tratamento é bem mais simples e tem total eficácia. Já não é mais necessário ficar internado e isolado em hospitais e leprosários. Para quem tem a hanseníase em sua forma paucibacilar (ocorre em pessoas com alta resistência ao bacilo, é mais fraca e, geralmente, não-transmissível), o tratamento dura seis meses e é ministrado com doses de Dapsona e Rinfampsina. O paciente que tem a hanseníase em sua forma multibacelar (altamente transmissível; causa atrofia muscular, inchaço das pernas e surgimento de nódulos na pele) deve fazer um tratamento de um ano com Dapsona, Rinfampsina e Clofazimina.
A partir do momento que o portador da hanseníase começa a poliquimioterapia com esses remédios, mesmo que tenha a forma transmissível da doença, deixa de oferecer riscos de transmissão. Alguns efeitos colaterais podem ser sentidos por causa do tratamento, porém, é possível trabalhar e levar a vida normalmente.
Há oito anos, foi criada em Guarapuava uma associação para auxílio das pessoas com hanseníase, a AFH (Associação de apoio às famílias com hanseníase). A assistente social responsável pela sede em Guarapuava (A AFH funciona também em Itajaí e Londrina), Juliane Fabris Portela, conta que, hoje, cerca de 150 famílias são atendidas. A associação recebe doações de roupas, fraldas e alimentos e depois encaminha para os portadores da doença. “As pessoas que recebem nossa ajuda são bastante pobres e para elas a cesta básica que doamos todos os meses realmente faz grande diferença”, comenta Juliane.
Em contrapartida, Iara alega que os portadores de hanseníase têm todo o atendimento necessário oferecido pelo governo e que não é necessário existir uma instituição, à parte, responsável por isso.
O termo lepra passou a ser criminalizado durante o mandado do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Em 29 de março de 1995, ele assinou a lei 9010, na qual , em seu artigo 1, determina que “ o termo ‘lepra e seus derivados não poderão ser utilizados na linguagem empregada nos documentos oficiais da administração centralizada e descentralizada da União e dos Estados-membros”. Também foi feito um artigo para explicar quais termos deveriam ser empregados a partir daquele momento: o termo “lepra” deu lugar para o termo “hanseníase”, e “leproso” virou “doente de hanseníase”.
Em 2007, o Governo Federal estabeleceu um decreto que oferece a todas as pessoas que foram internadas em leprosários e sofreram constrangimentos pela sua doença uma pensão vitalícia de R$ 750. Existem alguns filhos de portadores de hanseníase que lutam por uma indenização do governo pelo fato de terem sido separados dos seus pais no período de 1923 a 1986.
Independente de pensões ou indenizações, o que aconteceu no passado é algo impossível de ser apagado do imaginário social. As chagas deixadas pelo preconceito e isolamento que os leprosos sofreram permanecem latentes até os dias de hoje. Campanhas são feitas para mostrar que a hanseníase tem cura e medidas são tomadas para erradicar a doença no Brasil, porém, os pacientes que têm essa doença ainda são muito estigmatizados e a maioria tenta ao máximo esconder o problema.
Não é minha intenção encerrar esta matéria com uma lição de moral, mas desde o momento em que iniciei minha pesquisa sobre a hanseníase, aprendi muita coisa sobre a doença que antes nem fazia ideia e deixei vários preconceitos para trás.
É preciso desmistificar a hanseníase, entendendo que trata-se de uma doença do corpo, passível de ser tratada e curada, e não uma doença do espírito, como quiseram muitos em tempos nem tão remotos. Não há mistério algum rondando essa patologia, há, sim, um invólucro de preconceitos e ignorância construído socialmente, mas que pode ser revisto e desconstruído. Cabe à mídia comprometida com o avanço humano e social apresentar os fatos, mostrar e detalhar o que esta doença pode ou não causar.

Editado por Gabriela Titon

Fotos: Anita Hoffmann


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* Matéria produzida durante o segundo semestre de 2011 na disciplina de Pesquisa em Comunicação no 4º Ano do Curso de Jornalismo da Unicentro.

A doença e pobreza: um círculo vicioso

Pessoas que convivem com miséria no bairro Jardim das Américas ilustram a forte relação entre o social e a doença

Helena Krüger

“Miséria é miséria em qualquer canto. Fracos, doentes,
aflitos, carentes. Riquezas são diferentes
O Sol não causa mais espanto. Miséria é
miséria em qualquer canto. Cores, raças, castas, crenças”.

Arnaldo Antunes

Altino e Nerci Machado, Maria de Lourdes Pereira da Silva, Maria Aparecida Souza e seu filho Luiz Fernando vivem no bairro do Jardim das Américas, um local afastado do Centro e uma das regiões mais pobres e carentes de Guarapuava. Lá, enxerga-se o que é, efetivamente, a miséria, desigualdade e acima de tudo a exclusão. O modo de viver dessas três famílias reflete uma realidade de sofrimento, de pessoas que convivem com a falta de alimento, residem em casas que não oferecem uma condição digna, muitas vezes não há uma renda fixa. Elas são ignoradas, seus problemas e dificuldades não são ouvidos. Estão, definitivamente, à margem da sociedade. Seres humanos que além de passarem por todos esses problemas de origem financeira, convivem no dia a dia com um sofrimento ainda maior que é a doença, tanto de ordem física como emocional.
Muitos fatores compõem essas realidades de miséria, trata-se de um problema sistêmico, um processo que tem raízes e origens complexas. São indivíduos inseridos num contexto histórico, cultural e sócio- econômico. Vivem em locais excluídos, lugares que são chamadas pelo sociólogo Zygmunt Bauman de invisíveis, ou seja, a sociedade como um todo não os enxerga.
A história dessas famílias demonstra que doença é também um processo social e que a miséria e as condições do meio interferem e muito no estado de saúde.

Altino e Nerci Machado
Altino Acir Machado, 57 anos, mora há mais de 30 no bairro e conta que doença de sua esposa, Nerci, modificou completamente a sua vida. Ele fala que era um homem trabalhador, mas precisou abandonar o trabalho para poder cuidar melhor de Nerci. Segundo seu Altino, depois que a mulher adoeceu, ele quase não pode sair de casa pelo medo de deixá-la sozinha. “Há mais ou menos três anos, ela sofreu um derrame, e ficou assim com a língua enrolada, não fala coisa com coisa e até anda não anda direito, fica se balançando”. O senhor não sabe explicar ao certo o que ela tem, mas mostra uma caixa cheia de remédios que consegue através do Caps (Centro de Atenção Psicossocial), um dispositivo que reserva atenção especial à saúde mental.
O estado de saúde de Nerci comprometeu a capacidade de realizar as atividades mais simples, até mesmo para se alimentar depende do marido. “Somos só nós dois aqui em casa, por exemplo. Se eu sair até fome ela passa, porque não sabe mais cozinhar, nem faz outros serviços de casa, tudo tem que ser eu mesmo”, desabafa seu Altino.
Com muitas dificuldades financeiras, a rotina de Altino se resume em cuidar da mulher e revela que sobrevive apenas com o dinheiro que consegue vendendo matérias recicláveis. “Não dá nada, se for pra trabalhar dá uns cinquentão por mês, mas como é só eu e ela a gente se vira”.
É estranho ver como o senhor conta com naturalidade todo o sofrimento que já teve na vida. “Perdi um filho agora faz uns seis meses, e outro quando tinha oito anos, passei muita crise. Até a minha casa pegou fogo a um tempo atrás que tive que reconstruir sozinho, queimou tudo, ficamos sem nenhum documento”.
Apesar de tantos infortúnios, o senhor continua de bom humor e demonstra ter muita preocupação e amor por sua esposa. “A Nerci é minha esposa há mais de 50 anos, é a primeira, nunca troquei, não tem como abandoná-la. A gente fica triste porque esse negócio que deu nela comprometeu completamente, essa mulher era trabalhadeira, me ajudava muito”.
Muitas vezes, é difícil acreditar como essas pessoas sobrevivem. A pobreza, quando alcança este nível, causa um estado de desilusão, indivíduos não conseguem mais enxergar uma saída aparente e acabam caindo no comodismo, nem mesmo sabem dizer o que gostariam que mudasse na vida. Seu Altino lamenta e fala que depois de tanto acidente na vida, agora o quer é se aposentar.

Maria Aparecida Silva e família
Aos 45 anos, Maria Aparecida Souza e o marido, Joel Brasil da Silva, 47 anos, estão desempregados e precisam cuidar de um lar com mais cinco pessoas. Ela precisou abandonar o trabalho por motivos de saúde depois que teve um derrame e conta as dificuldades que as doenças trouxeram. “Eu trabalhei muitos anos, mas me deu um derrame e a daí não posso pegar nenhum serviço, passei três meses na cadeira de roda”. Dona Maria também é hipertensa, apresenta colesterol alto e ainda tem dificuldades para caminhar, o que impossibilita sua capacidade de trabalho. “Eu até tenho vontade de fazer alguma coisa e voltar pro serviço, mas quando me ataca a pressão fico muito ruim, tenho problema na coluna e minhas pernas incham de um jeito que não dá pra andar. Fora isso, ainda preciso cuidar das crianças”. A sacola de remédios é grande, ela toma diariamente quatro tipos de medicamentos.
Maria não é a única que está com problemas de saúde na família, o filho mais velho, L.F*, tem quatorze anos e tem algum tipo de transtorno psíquico que a mãe não sabe explicar o que é. O menino, desde os oito anos, é tratado e hoje toma remédios controlados com acompanhamento médico do Centro de Atenção Psicossocial. Conforme a mãe, o menino nasceu prematuro, de sete meses, e ficou com alguma sequela. “Deu um problema nele que comecei a tratar desde pequeno, fiz um pouco de tratamento e parei, agora ele voltou e toma remédios que pego no Prosam [Programa de Saúde Mental], que é da prefeitura”. Ela diz enfrentar muitos problemas no relacionamento com L.F e que o adolescente também tem dificuldade na escola. “Ele é bastante bravo e nervoso, até nos estudos não vai bem, ainda está na quarta série e repetiu várias vezes a terceira”. No entanto, percebe-se que a falta de informação e ausência de um atendimento médico mais qualificado acaba por agravar o quadro das doenças, que muitas vezes não são tratadas de maneira adequada. A senhora reclama e diz não saber até hoje exatamente o que o filho tem. “Eles não explicam direito, não falam nada, só me dão receitas e remédios”.
Quando foi questionada se teria vontade de mudar algo em sua vida, Maria ficou pensativa e logo disse muito emocionada: “é difícil dizer, tem muita coisa, mas se a gente conseguisse alguma aposentadoria seria melhor. Esses tempos, comprei um remédio que o médico me receitou para dormir, e também porque do nada me dá uma vontade de chorar”.
O marido, Joel Brasil da Silva, 47 anos, relata que aliado a pobreza e problemas de saúde, a família já passou por muitos traumas. “Duas das minhas filhas foram abandonadas pela mãe que morava no Cantagalo, e lá aconteceu de uma delas sofrer um abuso sexual, aí a gente conseguiu a guarda delas”.
No caso da família de seu Joel e de muitas outras, o fator emocional e o contexto psicossocial da doença ajudam a agravar o quadro dos doentes.

Maria Lourdes Souza
“Sou doente das pernas e dos ossos, a doença me prejudicou em tudo, eu não faço nada”. Com essas palavras, dona Maria Lourdes de Souza, aos 63 anos de idade, resume a sua condição atual.
Dona Maria e o marido recebem o auxílio-doença do governo há quase dez anos, ambos sofrem diferentes tipos de doenças. A senhora Lourdes conta que há seis anos descobriu que tinha câncer no estômago, com a enfermidade passou mais de três anos realizando em um longo tratamento com quimioterapia, que fazia em Curitiba custeado pelo SUS. Hoje, do câncer está curada, porém seu estado de saúde continua complicado. “Tenho gastrite, hérnia, tireoide muito grande e essa doença que deixa minha perna inchada, mas não sei dizer o nome, por isso não posso sair sozinha, sou muito esquecida, me perco fácil e me dá um tipo de desmaio”.
Maria Lourdes sempre foi dona de casa, e diz sentir saudades do tempo que era sadia. “Minha rotina é a doença, a cada três meses preciso aplicar 10 injeções, tomo dois remédios controlados que são contínuos, o médico me explicou que são para sempre”.
O casal recebe o salário mínimo, eles dizem viver com tranquilidade financeira, mas é claro sem nenhum conforto, já que a renda é gasta com muitos medicamentos. “A maior parte do meu dinheiro vai para os remédios, o do meu marido vai para a comida”.

Terapia Comunitária
A TC (terapia comunitária) é um procedimento terapêutico que surgiu no ano de 1987, em Pirambu, uma das maiores favelas de Fortaleza. Ela começou pela iniciativa do advogado Aírton Barreto, que desenvolvia um projeto de apoio a favela e percebeu que grande parte dos problemas na comunidade estavam relacionados a questões psicológicas Assim, resolveu chamar o irmão, que era psiquiatra, Adalberto Barreto, que foi o idealizador do projeto que visava realizar sessões terapêuticas em grupo, e tinha a intenção da comunidade trabalhar em conjunto para melhorar a saúde mental. A TC forma líderes e terapeutas da própria região, cria redes solidarias e voluntárias que ajudam a curar a doença tanto emocional quanto biológica.
Segundo o psiquiatra, Adalberto Barreto, pessoas que convivem com extrema pobreza sofrem da chamada “síndrome psíquica da pobreza”, que ocasiona uma série de doenças que têm origem no sofrimento, baixa autoestima, além de má alimentação e problemas de saneamento.


Quase ametade da renda da família de dona Lourdes é destinada emmedicamentos


DonaMaria emocionada relata como a doença está presente em sua vida


Seu Altinomostra a caixa de remédios da mulher que sofre de alguma doençaneurológica

Editado por Gabriela Titon

Com ou sem camisinha? - Um perfil da Aids em Guarapuava

Autora: Andréa A. Alves
Clique na imagem para download do livro reportagem em pdf

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* Matéria produzida durante o segundo semestre de 2011 na disciplina de Pesquisa em Comunicação no 4º Ano do Curso de Jornalismo da Unicentro.

A questão do homeschooling: quem tem o direito de educar?

Vivemos em uma democracia que nos dá direito a educação e ao voto, mas ao mesmo tempo ameaça aqueles que não “usufruírem” à risca destes mesmos direitos

Júlio Stanczyk

Pode-se dizer que a educação é um conjunto de processos que ajudam no crescimento e no desenvolvimento da personalidade de um ser humano. É óbvio que uma pessoa adquire a sua formação em todas as atividades de sua vida. Todas as horas acordados, principalmente quando falamos de jovens e crianças são, visivelmente, gastos no aprendizado, de uma forma ou de outra. Seria um absurdo limitar a "educação" ao prazo gasto na escolarização formal, todos estão aprendendo o tempo todo. Aprendendo a formar ideias sobre outras pessoas, sobre si mesmos, sobre o mundo e as leis da natureza ao redor. Este é um processo contínuo, e é natural que a escolarização formal constitua apenas um item neste longo processo.
Entretanto, há sim uma área da educação onde a espontaneidade direta e alguns preceitos não são suficientes. Esta é a área a ser abrangida pelo estudo formal, especificamente a parte do intelecto. Todos são, em certo sentido, autodidatas, porém sem o conhecimento acumulado pelas gerações passadas, seria necessário que cada criança reinventasse a roda e partindo do zero conduzisse sua evolução intelectual.
Graças ao crescimento nas legislações e regulamentações da educação ao redor do mundo, mais crianças e jovens conquistaram o direito a educação, o que é benéfico por diversos aspectos, porém inúmeros problemas quanto a liberdade educacional foram criados. Afinal, quem é o portador do direito de ensinar uma criança? E quem é o mais capacitado para atender as necessidades de cada pequeno indivíduo? Simone Weil, escritora francesa da primeira metade do século XX, descrevia o direito como “obrigação reversa”. Ter direito a um salário é ter um empregador que está obrigado a pagá-lo. Se, ao contrário, o titular do direito tem também a obrigação de satisfazê-lo, não há direito algum, apenas a obrigação. É nesse cenário que surge a problemática entre o ensino domiciliar e o ensino escolar.

Educação ao longo da história
Para compreendermos melhor o assunto, é necessário retornar aos fatos históricos e entender de onde vem os modos como a educação é conduzida atualmente. O caso da Grécia antiga merece atenção especial por representar claramente as duas maneiras como a educação foi estruturada historicamente na sociedade. Em Atenas, a prática original do ensino público obrigatório rapidamente deu lugar a um sistema voluntário. Por outro lado, em Esparta, a sociedade foi organizada como um vasto acampamento militar, e as crianças eram educadas, obrigatoriamente, nos quartéis.
No Egito antigo, as crianças ficavam com suas mães até os quatro anos de idade. Durante estes anos, o principal foco da educação era o convívio familiar e o respeito pelos antepassados. A partir dessa idade, a educação dos meninos era geralmente assumida pelos pais, que ensinavam o próprio ofício aos filhos. Algumas crianças, no entanto, iam para uma escola local, mantida pelo Estado, enquanto outros ainda participavam de uma escola voltada para carreiras específicas, como sacerdotes e escribas. Mais do que escolhas pessoais, o fator determinante na educação das crianças era a posição que o pai ocupava na sociedade.
As instituições ensinavam escrita, leitura, matemática e esportes, bem como ética e a organização da sociedade egípcia. Na idade de 14 anos, filhos de agricultores ou artesãos, por exemplo, se uniam a seus pais em suas profissões; já outras crianças, cujos pais tinham carreiras de maior status, continuavam sua educação em escolas especiais geralmente ligadas a templos ou centros governamentais. Este nível mais alto de educação era chamado de "Instrução de Sabedoria" e era focado em habilidades necessárias para posições como médico ou escriba.
Quanto às mulheres, a maioria era educada unicamente para a maternidade e o casamento. Geralmente, elas eram treinadas em casa por suas próprias mães. Outras recebiam instrução para serem dançarinas, artistas, artesãs e padeiras, mas somente as filhas dos nobres mais importantes aprendiam a ler e escrever.
Segundo artigos publicado no website do Instituto Ludwig von Mises, a primeira legislação que previa a escolaridade obrigatória no Ocidente apareceu apenas no final do século XVII e início do século XVIII, nos Estados germânicos de Gotha, Calemberg e Prússia. Isso foi possível graças ao contexto social criado pela reforma protestante um século antes. O reformador alemão Martinho Lutero chegou a escrever um livro pioneiro no tema com o título “Aos conselhos de todas as cidades da Alemanha, para que criem e mantenham escolas”, no qual defendia a alfabetização das camadas populares com objetivo que todos tivessem acesso às escrituras sagradas e para isto, pedia a cooperação dos principados protestantes da Alemanha. Este foi um passo importante dado pelo modelo escolar dominante de hoje. Nas palavras do próprio Lutero: “Caros governantes [...] eu afirmo que as autoridades civis estão sob o dever de obrigar as pessoas a enviar seus filhos para a escola [....] Se o governo pode obrigar os cidadãos para o serviço militar em tempo de guerra, quanto mais tem o direito de obrigar as pessoas a enviar seus filhos à escola , porque neste caso estamos em guerra com o diabo, cujo objetivo é esgotar nossas cidades e principados de seus homens fortes”.

O caso americano

Há apenas duas décadas, o aprendizado escolar domiciliar era ilegal nos Estados Unidos. Em meados da década de 90, graças a alterações na legislação, o novo movimento de educação domiciliar ganhou direitos e se estendeu a mais pessoas. De acordo com o Centro Nacional de Estatísticas na Aprendizagem (NCES, na sigla em inglês), aproximadamente 2,5 milhão de alunos estudaram exclusivamente em casa no ano de 2010 - outras organizações sugerem que o número real pode ser ainda maior. Todos, com exceção de nove Estados americanos, exigem que os alunos da escola domiciliar notifiquem o Estado se optarem pelo aprendizado escolar em casa.
O caso americano chama atenção pelos motivos diversos que levaram a legalização do homeschooling. Durante anos, a educação domiciliar foi, igualmente, uma revindicação da direita cristã e da esquerda contracultural contra o monopólio estatal da educação. As duas correntes foram muito influenciadas, respectivamente, pelos educadores Raymond Moore e John Holt já nas décadas de 60 e 70.
O público atraído pelas ideias de Raymond Moore e John Holt reflete as origens e estilos de vida dos dois pesquisadores. Moore, um missionário cristão, foi educado pelos pais que prezavam a instrução em valores tradicionais e costumes religiosos. Por outro lado, Holt, um humanista, tornou-se uma figura pública por ser um dos pioneiros nos estudos dos direitos da criança e do adolescente. Suas pesquisas tiveram grande aceitação por adeptos da “Nova Era”, hippies e imigrantes.
Segundo o Instituto Cato, organização de pesquisa em políticas públicas norte-americanas, os dois homens ganharam reputação nacional naquele tempo. Trabalhando independentemente um do outro, ambos abordavam a angústia que diversos americanos sentiam a respeito do sistema de ensino, segundo John Holt, “um sistema que parecia existir apenas para promover as carreiras de elites educacionais”.
Fortalecido pelas frequentes aparições na mídia nacional, testemunhos em assembleias do Poder Legislativo e em tribunais, Holt e Moore trabalharam incansavelmente para levar ao grande público a mensagem de que o homeschooling era uma forma superior de educação para as crianças americanas; um regresso a uma era pré-industrial, quando as famílias trabalhavam e aprendiam juntas.

História da educação no Brasil

No Brasil, há menos de um século, era comum o ensino domiciliar, sendo a maioria das pessoas - principalmente durante a primeira infância - ensinadas pelos pais ou parentes próximos dentro do ambiente familiar, aprendendo os primeiros passos da gramática, da matemática e das ciências em geral sem participar de um programa regulamentado de ensino. As constituições daquele período defendiam o papel prioritário dos pais na educação dos filhos, sem tirar-lhes o direito de escolher onde e como educar. Pode-se observar no texto da Constituição de 1946 o seguinte trecho: “a educação é direito de todos e será dada no lar e na escola. A educação deve ser inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana”. Texto semelhante pode ser encontrado nas Diretrizes da Educação Nacional e Lei de Bases, revogada em 20 de dezembro de 1961: “o homem de família ou o tutor não pode exercer função pública, nem ocupar emprego em entidade de economia mista ou empresa concessionária de serviço público se ele não apresentou qualquer prova de que seu filho está matriculado em uma escola, ou que a criança está recebendo educação em casa”.
Em 1934, a educação gratuita em escolas passou a existir. Nesta época, o ensino era composto de apenas cinco anos. Por força da lei nº 5.692/71 o ensino estendeu-se para oito anos, mudando a nomenclatura para primeiro grau algum tempo depois. Foi somente com a Constituição de 1988 que esta nomenclatura foi alterada para ensino fundamental, o que também acirrou o cerco ao ensino domiciliar.

Homeschoolers brasileiros

Júlio Severo é o ativista dos direitos ao homeschooling mais conhecido no Brasil. Além de proferir palestras sobre o assunto ao redor do mundo, ele mantêm um blog (www.juliosevero.blogspot.com) com temas relacionados constantemente atualizado. Em entrevista por e-mail, Severo, que deixou o Brasil em 2009 para poder praticar o ensino domiciliar com seus dois filhos, comentou o modo como vê a educação atualmente no Brasil. “Hoje em dia, as escolas públicas e até mesmo as escolas particulares, que geralmente são muito melhores do que as instituições públicas no Brasil, estão perdendo a razão de existir. Como se isso não bastasse, há também outras questões sérias. A violência contra as crianças, brigas, violência sexual, uso de armas, furtos, assaltos e outros tipos de crimes”. Segundo ele, em 2002, um livro intitulado “Violência nas Escolas” foi publicado pela Unesco, especificamente para tratar do crescimento da criminalidade no ambiente escolar brasileiro. O livro traça um importante panorama da situação atual.
Quando perguntado a respeito do ensino escolar compulsório, Severo foi enfático na sua posição: “os pais devem ter absoluta liberdade e direito de educar seus filhos em casa. As escolas públicas e privadas também são opções, é necessário que existam, mas só os pais podem tomar a decisão final”. Para ele, mesmo que as escolas públicas fossem capazes de produzir resultados satisfatórios, tais resultados não poderiam ser usados como pretextos para tirar dos pais o direito de decidir a melhor educação para seus filhos.
Quanto a situação atual da educação doméstica, Severo citou diversos pontos contrários e favoráveis que estão em discussão no Brasil. Segundo ele, atualmente, tramitam na Câmara dos Deputados, desde 2008, os projeto de lei 3518/2008, de autoria dos deputados Henrique Afonso (PT-AC) e Miguel Martini (PHS-MG); e o 4122/2008, de autoria do deputado Walter Brito Neto (PRB-PB). Esses projetos, que estão tramitando juntos, propõem a legalização explícita do ensino domiciliar no Brasil. Em junho de 2009, a então deputada relatora, Bel Mesquita (PMDB-PA), apresentou à CEC (Comissão de Educação e Cultura) um relatório propondo a rejeição dos projetos sobre homeschooling, alegando que eles violariam a constituição e as leis brasileiras, que a socialização escolar é imprescindível e que há países desenvolvidos que proíbem ou restringem o ensino domiciliar. Em 15 de setembro deste ano, o novo relator, o deputado Waldir Maranhão (PP-MA), apresentou um novo relatório à CEC sobre essas propostas. Este segundo relatório recomenda a rejeição dos dois projetos, com base em argumentos idênticos aos da antiga relatora Bel Mesquita.
Severo lembrou ainda, que há, no entanto, jurisprudência para aplicação do ensino domiciliar, porém, requer complicados processos jurídicos que muitas vezes são rejeitados pelos juízes, por falta de conhecimento destes, ou por divergências ideológicas. A respeito do assunto, Severo citou Henrique Cunha de Lima, procurador do Ministério Público de Contas do Estado do Rio de Janeiro:
Segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, os tratados internacionais devidamente ratificados pelo Congresso Nacional têm status supralegal. Isso quer dizer que esses tratados são hierarquicamente inferiores à Constituição (lei positiva máxima), mas superiores às demais leis. Ora, o ECA (Estatuto da Criança e Adolescente), que é uma lei ordinária, diz: “Os pais ou responsáveis têm a obrigação de matricular seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino” (art. 55). Mas a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Convenção Americana dos Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), que são tratados internacionais ratificados pelo Brasil, dizem o contrário e, portanto, prevalecem: “Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus filhos” (artigo 26.3 da Declaração Universal dos Direitos Humanos); "Os pais e, quando for o caso, os tutores, têm direito a que seus filhos e pupilos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções." (Artigo 12.4 da Convenção Americana dos Direitos Humanos).
Além de Julio Severo, outras histórias de homeschooling no Brasil ganharam relevância na mídia, como é o caso de Cleber Nunes, que enfrentou os tribunais para educar seus filhos em casa. Segundo o portal de notícias Mídia Sem Máscara, em março de 2010, Nunes foi condenado a pagar uma multa de R$ 3.200 em um tribunal criminal, acusado de praticar “abandono intelectual de menores” com seus filhos Jonatas e Davi. Como Nunes se recusou a pagar a multa, chegou a ficar 15 dias na prisão. Anteriormente, Nunes já havia sido processado civilmente duas vezes por causa dos mesmos motivos, mas venceu os dois processos.
O que chamou a atenção da mídia no caso de Nunes foi o modo como os julgamentos foram conduzidos e como todas as provas contrárias foram ignoradas na hora da sentença criminal. Inicialmente, o tribunal cívil exigiu que as crianças se submetessem a testes psicológicos, os quais foram imediatamente realizados e não apresentaram nenhuma anormalidade. A seguir, as crianças foram obrigadas a realizar provas para verificar o nível de conhecimento escolar. Houve muita reclamação por parte da defesa de Nunes, que alegou que as provas exigiam muito mais do que o conteúdo ensinado para crianças daquela idade em escolas regulares.
Apesar da controvérsia, as crianças foram aprovadas em todos os testes e os processos civis foram encerrados. Contudo, a despeito destas sentenças, o processo criminal foi aberto e todas as provas que negavam o “abandono intelectual” nos outros processos foram ignoradas pelo juiz. Na ocasião, Nunes comentou para a reportagem do Mídia Sem Máscara: “Eles [os tribunais] impuseram testes o que significa que as duas possibilidades deviam ser consideradas, ou as crianças estavam sofrendo abandono intelectual, ou não. No entanto, ambos [Jonatas e Davi] passaram pelos testes, mas continuaram a nos acusar de criminosos. Parece que o único resultado válido era o fracasso das crianças”.

O ensino regular

Para a vice-secretária do Núcleo Regional de Educação de Guarapuava, Sandra Casagrande, embora a escola tenha a função de ensinar a criança a conviver socialmente, ela não é o único lugar onde isso acontece. “Um time de futebol, uma igreja e outras instituições da sociedade civil são igualmente benéficas à socialização”. Sandra acredita que a legalização do ensino domiciliar não afetaria negativamente a função da escola. “A verdade é que a maioria dos pais não possui habilidade necessária para ensinar matérias escolares a uma criança, outros simplesmente não possuem tempo disponível para isso. No mundo atual, a escola nunca seria substituída por outro modelo educacional, acredito que ambos os modelos podem existir ao mesmo tempo”.
Para Anderson Amaral, de nove anos, aluno da 3ª série de uma escola estadual de Guarapuava, estudar em casa poderia ser interessante. “Às vezes, eu gostaria de ficar mais tempo em casa, é ruim ter que ir todos os dias a escola. Minha mãe é professora de inglês, acho que ela conseguiria me ensinar bastante coisa”. Já o irmão mais velho, Cleyton, de 11 anos, discorda. “Eu gosto dos professores e dos meus amigos da turma, não sei se eu iria acostumar a estudar em casa”.

Editado por Gabriela Titon

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* Matéria produzida durante o segundo semestre de 2011 na disciplina de Pesquisa em Comunicação no 4º Ano do Curso de Jornalismo da Unicentro.