segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Vade retro


Leandro Povinelli

“O homem de cáqui perambulou entre as ruínas. O Templo de Nabu. O Templo de Ishtar. Analisava as vibrações. No palácio de Assur-banipal, estacou. E então lançou um olhar de soslaio a uma estátua de pedra calcária que se avolumava in situ: asas hirsutas, garras nas patas, pênis bulboso, saliente, curto e grosso, e uma boca tensa, arreganhada num esgar de riso feroz. O demônio Pazuzu. Súbito esmoreceu. Sabia. Vinha vindo. Olhou a poeira. Sombras Aceleradas. Ouviu surdos latidos de matilhas de cães selvagens vagueando pela periferia da cidade. O globo solar já começava a se por no horizonte. Baixou as mangas da camisa e abotoou-as, enquanto se levantava uma brisa tiritante. Do sudoeste. Apressou-se a tomar o rumo de Mosul e de seu trem, o coração confrangido pela gélida convicção de que em breve teria de enfrentar um velho inimigo”.
Assim termina o prólogo do livro O Exorcista, escrito por William Peter Blatty em 1971. Dois anos mais tarde, em 1973, o filme homônimo, baseado no livro, chegaria aos cinemas, popularizando um tema que, até hoje, a ciência não consegue explicar com exatidão.



“O exorcismo visa expulsar o demônio ou livrar a pessoa da influência demoníaca. Isto acontece pela autoridade espiritual que Jesus confiou à sua Igreja. Bem diferente é o caso da doença, sobretudo a psíquica, cujo tratamento depende da ciência médica. É muito importante verificar antes de celebrar o exorcismo se trata-se da presença do maligno ou se é apenas uma doença”, explica o padre Jorge Morkis, sacerdote há quase 50 anos e eleito exorcista oficial da arquidiocese de Curitiba.
Nascido na Polônia e radicado no Brasil há 40 anos, Morkis explica que os padres exorcistas já nascem com a vocação, mas precisam esperar um chamado para que a função possa ser desempenhada da maneira correta. “No meu caso, tudo começou quando vi um jovem cometer suicídio dentro de uma igreja. Eu precisava entender o que estava acontecendo, se havia a presença ou não de espíritos malignos. Foi então que comecei a me dedicar aos estudos do exorcismo”.
O primeiro relato de um ritual católico de exorcismo foi escrito por Tertuliano, um apologista cristão que viveu entre os séculos 2 e 3. Porém, somente por volta do ano 500, a Igreja publicou a primeira instrução oficial de como realizar o ritual no documento Statuta Ecclesiae Latinae. Hoje, o ritual de exorcismo faz parte de um conjunto de textos denominados Rituale Romanum e, em 2004, a Congregação para a Doutrina da Fé, um dos órgãos da Igreja, ordenou que cada diocese designasse seu exorcista “oficial”. Para poder treinar e orientar os párocos, em 2005, a Associação Internacional de Exorcistas, criada por sacerdotes italianos, organizou o primeiro curso de nível universitário na área, em Roma. No currículo, constam aulas de teologia focada em demônios, medicina, psicologia e sociologia dos cultos satânicos.
Quando falamos da velha briga entre ciência e religião, Morkis também tem uma opinião formada. “O espírito é invisível, como o vento. Todos nós sabemos que o vento existe quando a folha farfalha. Sabemos quando tem espírito ruim. Para quem acredita em paranormalidade, tudo é paranormal. Quer-se explicar cientificamente as manifestações espirituais. Se a pessoa fala outra língua sem estudar, dizem que quando ela estava no ventre sua mãe teve contato com um professor, passando o conhecimento para a criança. O demônio sabe falar todas as línguas. Eu tenho um argumento para os psiquiatras, médicos e psicólogos. Por que a oração faz melhorar? Eles dizem que é uma sugestão, um placebo. Eu digo que não”.
No entanto, segundo a Igreja Católica, apenas 3% dos casos de possessão podem ser levados a sério. Para isso, é importante observar todos sintomas e saber diferenciá-los de possíveis patologias. “Força anormal, falta de higiene e cuidados com o próprio corpo, conhecimento de idiomas desconhecidos e/ou línguas mortas, blasfêmias, heresias e cropolalias são recorrentes em pessoas possuídas”, afirma Morkis. Além disso, o padre ainda aponta outras características marcantes em pessoas possuídas. “Tudo o que é de Deus, as imagens, as cruzes, água benta... Essas pessoas que estão com o maligno presente simplesmente não aceitam, não suportam. Rejeitam totalmente. Nunca vi, mas também existem os que levitam. Não me admiro com nada. Tudo pode acontecer. Tem quem sinta o inimigo com imagens, vozes, cheiros. Há fenômenos estranhos, mas não é explícito como no filme O Exorcista. A natureza do demônio é se esconder. Faz tudo para que se acredite que não existe. E em muitos casos, consegue”.
“Karras abriu a porta, e quase recuou ante a lufada de mau cheiro e frio gélido. A um canto do quarto, Karl, encolhido numa cadeira, de jaqueta verde oliva de caçador, já desbotada, estava virado para Karras, na expectativa. O jesuíta lançou logo um olhar ao demônio na cama. Os olhos faiscantes tinham-se fixado atrás dele, no corredor. Encaravam Merrin. Karras aproximou-se do pé da cama, enquanto Merrin se dirigia lentamente, alto e ereto, para o lado. Deteve-se ali, baixando os olhos para o ódio. Uma quietude sufocante pairava no ar. Regan passou então a língua voraz, enegrecida, pelos lábios rachados e intumescidos. O barulho foi idêntico ao de uma mão alisando um pergaminho amassado. O velho sacerdote ergueu a mão e traçou o sinal da cruz sobre a cama, repetindo depois o gesto pelo quarto todo. Voltando-se, tirou a rolha do vial de água benta. Merrin ergueu o vial e a cara do demônio ficou retorcida. Merrin começou a aspergir. O demônio esticou violentamente a cabeça, enquanto a boca e os músculos do pescoço estremeciam de raiva”.
Jorge Morkis diz que é necessário ter muita coragem para realizar os rituais. O padre afirma que já passou por maus bocados e que, apesar de alguns casos serem puramente patológicos, o exorcista crê na existência de espíritos, tanto os bons quanto os maus. “Uma vez me contaram que uma possessa ficava gritando ‘matem o padre Jorge, matem o padre Jorge!’. Nessas horas o medo pode aparecer, mas confio e acredito em Deus, sei que estou bem protegido por Ele. Os exorcismos realmente funcionam. Espíritos maus existem, e eu quase toda semana falo com eles. Esta é a realidade”.
Sua rotina de atendimentos é tão diabólica que nos primeiros meses deste ano o padre acabou acamado por um acidente vascular cerebral. “Eu disse, ele quer me derrubar”, avisa, como se falasse de um vizinho do condomínio. Mesmo adoentado, padre Morkis continua dando expedientes diários na Livraria Nossa Senhora do Equilíbrio, no Centro, onde abençoa e aconselha inúmeras almas atormentadas. Algumas lhe consomem poucos minutos. Outras, um ano inteiro. “Responder quantos exorcismos eu já fiz beira a confissão. Não quero anotar. Foram centenas. Exorcismo é bênção. As pessoas vêm mais de uma vez para receber, mas esquecem que em qualquer contato com o maligno volta tudo de novo. O pecado, o ódio, a raiva e a falta de perdão abrem a porta para o mal. É isso. O demônio existe. E é pior do que pintam. Não é como o chifrudo. É um monstro. Se o víssemos, morreríamos”.


“Karras sentiu-se mal. Depois o pêlo de seus braços começou a se eriçar. Com lentidão de pesadelo, aos poucos, a cabeça de Regan foi virando, girando feito um boneco, rangendo com o som de mecanismo enferrujado, até que o hediondo e cintilante branco daqueles olhos espantosos fixou-se nos dele. A cabeça voltou-se lentamente para Merrin. Karras olhou cautelosamente em torno, à medida em que as luzes do quarto começaram a piscar, diminuir, e por fim a se amorteceram numa cor de âmbar fantasmagórica, palpitante. Estremeceu de frio. O quarto estava mais gélido ainda. Uma batida abafada abalou o quarto. Depois outra. Por fim, repetiu-se continuamente, estremecendo paredes, soalho, teto, arrancando lascas, pulsando num ritmo pesado, como as batidas de um coração que fosse descomunal e estivesse condenado”.



“Os médicos observaram durante meia hora. Ela escoiceava. Rodopiava. Arrancava os cabelos. De vez em quando fazia um esgar, apertando as mãos contra as orelhas, como que para não ouvir um barulho súbito, ensurdecedor. Vociferava palavrões. Gritava de dor. Depois, por fim, arremessou-se de bruços sobre a cama, dobrando as pernas debaixo do estômago. E pôs-se a gemer coisas incoerentes. O psiquiatra puxou Klein para um canto. ‘Vamos aplicar-lhe um calmante’, cochichou. ‘Aí talvez dê para eu falar com ela’. O clínico concordou e preparou uma injeção de cinquenta miligramas de thorazina. Mas quando os médicos se aproximaram da cama, Regan pareceu pressenti-los, virando-se logo de costas e, enquanto o neuropsiquiatra tentava segurá-la, começou a dar berros estridentes de fúria malévola. Mordia. Agredia. Esquivava-se de suas mãos. Só quando chamaram Karl para ajudar foi que lograram mantê-la bastante imóvel para Klein aplicar a injeção. A dosagem resultou insuficiente. Injetaram mais cinquenta miligramas. Esperaram. Regan ficou dócil. Depois lânguida. Por fim, encarou os médicos com súbita perplexidade”.
Por mais que existam as divergências, o exorcismo continua sendo uma área fascinante para a ciência, visto que ninguém ainda possui uma explicação definitiva sobre alguns acontecimentos. De acordo com a psiquiatra Márcia Pereira Vertoni, vários casos não passam de distúrbios psíquicos, resolvidos com um tratamento médico adequado. “Muitas vezes, esses casos não passam de pessoas com múltipla personalidade, em que 30% das personas forjadas é sempre o demônio. Também podemos observar quadros de esquizofrenia, síndrome de Tourette ou força histérica que, apesar de não ser reconhecida pela medicina, são casos em que uma força extraordinária e anormal surge durante situações de muito estresse no paciente”.
Márcia, munida de um ceticismo impenetrável, não acredita em espíritos. Muito menos em demônios e possessões. “O demônio como conhecemos nada mais é do que uma adaptação de figuras mitológicas, como o deus grego Pã, por exemplo. Se é benéfico para a pessoa, acho ótimo que exista um apego religioso, algo em que ela possa se agarrar e sentir-se confortável. No entanto, vendo pelo lado científico, pelo lado psicológico, não conheço nenhum caso em que um paciente ‘possuído’ não pudesse ser tratado com uma medicação adequada. Nada contra quem acredita nessas coisas, mas, para mim, tudo tem uma explicação lógica, basta investigarmos com cautela”.




Editado por Gabriela Titon

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* Matéria produzida durante o segundo semestre de 2011 na disciplina de Pesquisa em Comunicação no 4º Ano do Curso de Jornalismo da Unicentro.

Um comentário:

  1. Bem escrita a matéria, intercalando com o livro e com figuras...poderiam atualizar o assunto? Em algum lugar vcs estão, que tal se reunirem e entrevistarem o padre novamente para saber das novidades? no mais, parabéns.

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