segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

A questão do homeschooling: quem tem o direito de educar?

Vivemos em uma democracia que nos dá direito a educação e ao voto, mas ao mesmo tempo ameaça aqueles que não “usufruírem” à risca destes mesmos direitos

Júlio Stanczyk

Pode-se dizer que a educação é um conjunto de processos que ajudam no crescimento e no desenvolvimento da personalidade de um ser humano. É óbvio que uma pessoa adquire a sua formação em todas as atividades de sua vida. Todas as horas acordados, principalmente quando falamos de jovens e crianças são, visivelmente, gastos no aprendizado, de uma forma ou de outra. Seria um absurdo limitar a "educação" ao prazo gasto na escolarização formal, todos estão aprendendo o tempo todo. Aprendendo a formar ideias sobre outras pessoas, sobre si mesmos, sobre o mundo e as leis da natureza ao redor. Este é um processo contínuo, e é natural que a escolarização formal constitua apenas um item neste longo processo.
Entretanto, há sim uma área da educação onde a espontaneidade direta e alguns preceitos não são suficientes. Esta é a área a ser abrangida pelo estudo formal, especificamente a parte do intelecto. Todos são, em certo sentido, autodidatas, porém sem o conhecimento acumulado pelas gerações passadas, seria necessário que cada criança reinventasse a roda e partindo do zero conduzisse sua evolução intelectual.
Graças ao crescimento nas legislações e regulamentações da educação ao redor do mundo, mais crianças e jovens conquistaram o direito a educação, o que é benéfico por diversos aspectos, porém inúmeros problemas quanto a liberdade educacional foram criados. Afinal, quem é o portador do direito de ensinar uma criança? E quem é o mais capacitado para atender as necessidades de cada pequeno indivíduo? Simone Weil, escritora francesa da primeira metade do século XX, descrevia o direito como “obrigação reversa”. Ter direito a um salário é ter um empregador que está obrigado a pagá-lo. Se, ao contrário, o titular do direito tem também a obrigação de satisfazê-lo, não há direito algum, apenas a obrigação. É nesse cenário que surge a problemática entre o ensino domiciliar e o ensino escolar.

Educação ao longo da história
Para compreendermos melhor o assunto, é necessário retornar aos fatos históricos e entender de onde vem os modos como a educação é conduzida atualmente. O caso da Grécia antiga merece atenção especial por representar claramente as duas maneiras como a educação foi estruturada historicamente na sociedade. Em Atenas, a prática original do ensino público obrigatório rapidamente deu lugar a um sistema voluntário. Por outro lado, em Esparta, a sociedade foi organizada como um vasto acampamento militar, e as crianças eram educadas, obrigatoriamente, nos quartéis.
No Egito antigo, as crianças ficavam com suas mães até os quatro anos de idade. Durante estes anos, o principal foco da educação era o convívio familiar e o respeito pelos antepassados. A partir dessa idade, a educação dos meninos era geralmente assumida pelos pais, que ensinavam o próprio ofício aos filhos. Algumas crianças, no entanto, iam para uma escola local, mantida pelo Estado, enquanto outros ainda participavam de uma escola voltada para carreiras específicas, como sacerdotes e escribas. Mais do que escolhas pessoais, o fator determinante na educação das crianças era a posição que o pai ocupava na sociedade.
As instituições ensinavam escrita, leitura, matemática e esportes, bem como ética e a organização da sociedade egípcia. Na idade de 14 anos, filhos de agricultores ou artesãos, por exemplo, se uniam a seus pais em suas profissões; já outras crianças, cujos pais tinham carreiras de maior status, continuavam sua educação em escolas especiais geralmente ligadas a templos ou centros governamentais. Este nível mais alto de educação era chamado de "Instrução de Sabedoria" e era focado em habilidades necessárias para posições como médico ou escriba.
Quanto às mulheres, a maioria era educada unicamente para a maternidade e o casamento. Geralmente, elas eram treinadas em casa por suas próprias mães. Outras recebiam instrução para serem dançarinas, artistas, artesãs e padeiras, mas somente as filhas dos nobres mais importantes aprendiam a ler e escrever.
Segundo artigos publicado no website do Instituto Ludwig von Mises, a primeira legislação que previa a escolaridade obrigatória no Ocidente apareceu apenas no final do século XVII e início do século XVIII, nos Estados germânicos de Gotha, Calemberg e Prússia. Isso foi possível graças ao contexto social criado pela reforma protestante um século antes. O reformador alemão Martinho Lutero chegou a escrever um livro pioneiro no tema com o título “Aos conselhos de todas as cidades da Alemanha, para que criem e mantenham escolas”, no qual defendia a alfabetização das camadas populares com objetivo que todos tivessem acesso às escrituras sagradas e para isto, pedia a cooperação dos principados protestantes da Alemanha. Este foi um passo importante dado pelo modelo escolar dominante de hoje. Nas palavras do próprio Lutero: “Caros governantes [...] eu afirmo que as autoridades civis estão sob o dever de obrigar as pessoas a enviar seus filhos para a escola [....] Se o governo pode obrigar os cidadãos para o serviço militar em tempo de guerra, quanto mais tem o direito de obrigar as pessoas a enviar seus filhos à escola , porque neste caso estamos em guerra com o diabo, cujo objetivo é esgotar nossas cidades e principados de seus homens fortes”.

O caso americano

Há apenas duas décadas, o aprendizado escolar domiciliar era ilegal nos Estados Unidos. Em meados da década de 90, graças a alterações na legislação, o novo movimento de educação domiciliar ganhou direitos e se estendeu a mais pessoas. De acordo com o Centro Nacional de Estatísticas na Aprendizagem (NCES, na sigla em inglês), aproximadamente 2,5 milhão de alunos estudaram exclusivamente em casa no ano de 2010 - outras organizações sugerem que o número real pode ser ainda maior. Todos, com exceção de nove Estados americanos, exigem que os alunos da escola domiciliar notifiquem o Estado se optarem pelo aprendizado escolar em casa.
O caso americano chama atenção pelos motivos diversos que levaram a legalização do homeschooling. Durante anos, a educação domiciliar foi, igualmente, uma revindicação da direita cristã e da esquerda contracultural contra o monopólio estatal da educação. As duas correntes foram muito influenciadas, respectivamente, pelos educadores Raymond Moore e John Holt já nas décadas de 60 e 70.
O público atraído pelas ideias de Raymond Moore e John Holt reflete as origens e estilos de vida dos dois pesquisadores. Moore, um missionário cristão, foi educado pelos pais que prezavam a instrução em valores tradicionais e costumes religiosos. Por outro lado, Holt, um humanista, tornou-se uma figura pública por ser um dos pioneiros nos estudos dos direitos da criança e do adolescente. Suas pesquisas tiveram grande aceitação por adeptos da “Nova Era”, hippies e imigrantes.
Segundo o Instituto Cato, organização de pesquisa em políticas públicas norte-americanas, os dois homens ganharam reputação nacional naquele tempo. Trabalhando independentemente um do outro, ambos abordavam a angústia que diversos americanos sentiam a respeito do sistema de ensino, segundo John Holt, “um sistema que parecia existir apenas para promover as carreiras de elites educacionais”.
Fortalecido pelas frequentes aparições na mídia nacional, testemunhos em assembleias do Poder Legislativo e em tribunais, Holt e Moore trabalharam incansavelmente para levar ao grande público a mensagem de que o homeschooling era uma forma superior de educação para as crianças americanas; um regresso a uma era pré-industrial, quando as famílias trabalhavam e aprendiam juntas.

História da educação no Brasil

No Brasil, há menos de um século, era comum o ensino domiciliar, sendo a maioria das pessoas - principalmente durante a primeira infância - ensinadas pelos pais ou parentes próximos dentro do ambiente familiar, aprendendo os primeiros passos da gramática, da matemática e das ciências em geral sem participar de um programa regulamentado de ensino. As constituições daquele período defendiam o papel prioritário dos pais na educação dos filhos, sem tirar-lhes o direito de escolher onde e como educar. Pode-se observar no texto da Constituição de 1946 o seguinte trecho: “a educação é direito de todos e será dada no lar e na escola. A educação deve ser inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana”. Texto semelhante pode ser encontrado nas Diretrizes da Educação Nacional e Lei de Bases, revogada em 20 de dezembro de 1961: “o homem de família ou o tutor não pode exercer função pública, nem ocupar emprego em entidade de economia mista ou empresa concessionária de serviço público se ele não apresentou qualquer prova de que seu filho está matriculado em uma escola, ou que a criança está recebendo educação em casa”.
Em 1934, a educação gratuita em escolas passou a existir. Nesta época, o ensino era composto de apenas cinco anos. Por força da lei nº 5.692/71 o ensino estendeu-se para oito anos, mudando a nomenclatura para primeiro grau algum tempo depois. Foi somente com a Constituição de 1988 que esta nomenclatura foi alterada para ensino fundamental, o que também acirrou o cerco ao ensino domiciliar.

Homeschoolers brasileiros

Júlio Severo é o ativista dos direitos ao homeschooling mais conhecido no Brasil. Além de proferir palestras sobre o assunto ao redor do mundo, ele mantêm um blog (www.juliosevero.blogspot.com) com temas relacionados constantemente atualizado. Em entrevista por e-mail, Severo, que deixou o Brasil em 2009 para poder praticar o ensino domiciliar com seus dois filhos, comentou o modo como vê a educação atualmente no Brasil. “Hoje em dia, as escolas públicas e até mesmo as escolas particulares, que geralmente são muito melhores do que as instituições públicas no Brasil, estão perdendo a razão de existir. Como se isso não bastasse, há também outras questões sérias. A violência contra as crianças, brigas, violência sexual, uso de armas, furtos, assaltos e outros tipos de crimes”. Segundo ele, em 2002, um livro intitulado “Violência nas Escolas” foi publicado pela Unesco, especificamente para tratar do crescimento da criminalidade no ambiente escolar brasileiro. O livro traça um importante panorama da situação atual.
Quando perguntado a respeito do ensino escolar compulsório, Severo foi enfático na sua posição: “os pais devem ter absoluta liberdade e direito de educar seus filhos em casa. As escolas públicas e privadas também são opções, é necessário que existam, mas só os pais podem tomar a decisão final”. Para ele, mesmo que as escolas públicas fossem capazes de produzir resultados satisfatórios, tais resultados não poderiam ser usados como pretextos para tirar dos pais o direito de decidir a melhor educação para seus filhos.
Quanto a situação atual da educação doméstica, Severo citou diversos pontos contrários e favoráveis que estão em discussão no Brasil. Segundo ele, atualmente, tramitam na Câmara dos Deputados, desde 2008, os projeto de lei 3518/2008, de autoria dos deputados Henrique Afonso (PT-AC) e Miguel Martini (PHS-MG); e o 4122/2008, de autoria do deputado Walter Brito Neto (PRB-PB). Esses projetos, que estão tramitando juntos, propõem a legalização explícita do ensino domiciliar no Brasil. Em junho de 2009, a então deputada relatora, Bel Mesquita (PMDB-PA), apresentou à CEC (Comissão de Educação e Cultura) um relatório propondo a rejeição dos projetos sobre homeschooling, alegando que eles violariam a constituição e as leis brasileiras, que a socialização escolar é imprescindível e que há países desenvolvidos que proíbem ou restringem o ensino domiciliar. Em 15 de setembro deste ano, o novo relator, o deputado Waldir Maranhão (PP-MA), apresentou um novo relatório à CEC sobre essas propostas. Este segundo relatório recomenda a rejeição dos dois projetos, com base em argumentos idênticos aos da antiga relatora Bel Mesquita.
Severo lembrou ainda, que há, no entanto, jurisprudência para aplicação do ensino domiciliar, porém, requer complicados processos jurídicos que muitas vezes são rejeitados pelos juízes, por falta de conhecimento destes, ou por divergências ideológicas. A respeito do assunto, Severo citou Henrique Cunha de Lima, procurador do Ministério Público de Contas do Estado do Rio de Janeiro:
Segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, os tratados internacionais devidamente ratificados pelo Congresso Nacional têm status supralegal. Isso quer dizer que esses tratados são hierarquicamente inferiores à Constituição (lei positiva máxima), mas superiores às demais leis. Ora, o ECA (Estatuto da Criança e Adolescente), que é uma lei ordinária, diz: “Os pais ou responsáveis têm a obrigação de matricular seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino” (art. 55). Mas a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Convenção Americana dos Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), que são tratados internacionais ratificados pelo Brasil, dizem o contrário e, portanto, prevalecem: “Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus filhos” (artigo 26.3 da Declaração Universal dos Direitos Humanos); "Os pais e, quando for o caso, os tutores, têm direito a que seus filhos e pupilos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções." (Artigo 12.4 da Convenção Americana dos Direitos Humanos).
Além de Julio Severo, outras histórias de homeschooling no Brasil ganharam relevância na mídia, como é o caso de Cleber Nunes, que enfrentou os tribunais para educar seus filhos em casa. Segundo o portal de notícias Mídia Sem Máscara, em março de 2010, Nunes foi condenado a pagar uma multa de R$ 3.200 em um tribunal criminal, acusado de praticar “abandono intelectual de menores” com seus filhos Jonatas e Davi. Como Nunes se recusou a pagar a multa, chegou a ficar 15 dias na prisão. Anteriormente, Nunes já havia sido processado civilmente duas vezes por causa dos mesmos motivos, mas venceu os dois processos.
O que chamou a atenção da mídia no caso de Nunes foi o modo como os julgamentos foram conduzidos e como todas as provas contrárias foram ignoradas na hora da sentença criminal. Inicialmente, o tribunal cívil exigiu que as crianças se submetessem a testes psicológicos, os quais foram imediatamente realizados e não apresentaram nenhuma anormalidade. A seguir, as crianças foram obrigadas a realizar provas para verificar o nível de conhecimento escolar. Houve muita reclamação por parte da defesa de Nunes, que alegou que as provas exigiam muito mais do que o conteúdo ensinado para crianças daquela idade em escolas regulares.
Apesar da controvérsia, as crianças foram aprovadas em todos os testes e os processos civis foram encerrados. Contudo, a despeito destas sentenças, o processo criminal foi aberto e todas as provas que negavam o “abandono intelectual” nos outros processos foram ignoradas pelo juiz. Na ocasião, Nunes comentou para a reportagem do Mídia Sem Máscara: “Eles [os tribunais] impuseram testes o que significa que as duas possibilidades deviam ser consideradas, ou as crianças estavam sofrendo abandono intelectual, ou não. No entanto, ambos [Jonatas e Davi] passaram pelos testes, mas continuaram a nos acusar de criminosos. Parece que o único resultado válido era o fracasso das crianças”.

O ensino regular

Para a vice-secretária do Núcleo Regional de Educação de Guarapuava, Sandra Casagrande, embora a escola tenha a função de ensinar a criança a conviver socialmente, ela não é o único lugar onde isso acontece. “Um time de futebol, uma igreja e outras instituições da sociedade civil são igualmente benéficas à socialização”. Sandra acredita que a legalização do ensino domiciliar não afetaria negativamente a função da escola. “A verdade é que a maioria dos pais não possui habilidade necessária para ensinar matérias escolares a uma criança, outros simplesmente não possuem tempo disponível para isso. No mundo atual, a escola nunca seria substituída por outro modelo educacional, acredito que ambos os modelos podem existir ao mesmo tempo”.
Para Anderson Amaral, de nove anos, aluno da 3ª série de uma escola estadual de Guarapuava, estudar em casa poderia ser interessante. “Às vezes, eu gostaria de ficar mais tempo em casa, é ruim ter que ir todos os dias a escola. Minha mãe é professora de inglês, acho que ela conseguiria me ensinar bastante coisa”. Já o irmão mais velho, Cleyton, de 11 anos, discorda. “Eu gosto dos professores e dos meus amigos da turma, não sei se eu iria acostumar a estudar em casa”.

Editado por Gabriela Titon

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* Matéria produzida durante o segundo semestre de 2011 na disciplina de Pesquisa em Comunicação no 4º Ano do Curso de Jornalismo da Unicentro.

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