segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Na trajetória, mais espinhos do que flores

Gabriela Titon

Acordar sem a certeza de ter algo para comer no jantar. Abrir os olhos e enxergar um mundo desbotado, enquanto a consciência analisa se vale a pena continuar tentando sair de tamanho caos. Saudade de algo que nunca se teve, sonhos interrompidos já na infância, desejos reprimidos. A falta de sorte de morar em um local abandonado e esquecido. As oportunidades escassas e a necessidade de se sustentar, ao invés de obter uma formação educacional. No bairro Jardim das Américas, não faltam histórias de quem apenas sobrevive (ou "sub-vive"), privando-se, até mesmo, de itens básicos ao bem-estar de um ser humano. Aliás, estar bem é um sentimento raro para pessoas que encontram pela trajetória mais espinhos do que flores.
Talvez seja mais fácil aceitar a situação e ignorar a possibilidade de tentar outra vez, pensando que nada vai mudar. Então, se é assim, para quê o esforço? O conformismo toma conta, quem sabe por não se ter mais forças para lutar, ou por acreditar que desse jeito está bom. "A gente vai vivendo, sabe como é". Doloroso é perceber que o ciclo se repete a cada geração, com algumas excessões. Parece até um déja vu. O que muda são os personagens, já que o sofrimento dos netos foi vivenciado pelos avós, em maior ou menor intensidade.
Um lugar sem esperança, que padece com necessidades não apenas materiais, mas também afetivas. Falta atenção e sobra carência. Numa manhã de sábado, logo cedo, já se ouviam músicas sertanejas em algumas moradias – som que perdurou até o horário do almoço. Casas emendadas como se fossem retalhos de tecido costurados, uma delas, ao lado de uma igreja, estava sendo pintada por dois rapazes. Quintais e calçadas tomados por diferentes vegetações: na maior parte, matos abandonados; em outros locais, flores colorindo a paisagem; e ainda pequenas plantações de milho ou hortas.
O tráfego de carroças e cavalos é constante: os materiais recicláveis chegam ao bairro afastado a cada minuto. As ruas de terra que empoeiram as residências permanecem iguais há anos, apenas algumas são de pedra ou asfaltadas. O transporte coletivo, mesmo com um valor alto de passagem (R$ 2,30), continua sendo a alternativa para se chegar ao Centro. O posto de saúde atende a população como pode, às vezes com a falta de médicos e medicamentos. A escola municipal Dionísio Kloster Sampaio educa enfrentando inúmeras dificuldades – não só materiais. A infraestrutura ausente e os problemas sociais são desafios estampandos nos olhares apreensivos de quem passa pelas ruas ou olha o horizonte pelas janelas, como se estivesse à procura de um novo caminho.
O desemprego é um dos problemas com os quais a população do bairro convive. Fatores como baixa escolaridade e idade avançada influenciam na dificuldade de se conquistar um emprego formal. A falta de qualificação faz com que muitos procurem alternativas na informalidade, trabalhando sobretudo como catadores de material reciclável. Outros, migraram do campo para a área urbana e acabaram sendo vítimas do êxodo rural, permanecendo em situação igual ou pior do que anteriormente. Trabalhar recebendo por dia na realização de serviços braçais é uma das opções encontradas principalmente pelos homens. Contudo, em época de colheita de batata, por exemplo, não há distinção entre eles e elas, todos devem prover o sustento da família. Existem mulheres que viram donas de casa para cuidar dos filhos pequenos. Há, ainda, quem possuía um emprego e teve de parar por determinada doença. A questão econômica do município também interfere ao não proporcionar emprego suficiente para toda a demanda existente de pessoas precisando de um serviço. As causas que geram e mantém o desemprego são inúmeras, assim como o sofrimento é imenso. A coragem, entretanto, fala mais alto para que ao menos se tente vencer as batalhas diárias.

Altino, o cavalo e a aposentadoria

Aos 57 anos, Altino Acir Machado fica em casa cuidando da esposa adoecida. Sai para catar material reciclável, vez ou outra, porque não pode deixá-la sozinha. Está desempregado há mais de três anos. Antes, trabalhava em serrarias, mas foi obrigado a parar por vontade do destino, quando sua mulher sofreu um AVC (acidente vascular cerebral) e se tornou dependente de um acompanhante que a ajudasse constantemente. "Quando ela estava boa e saia comigo, ela ajudava. Era trabalhadora, mas depois do derrame, não consegue mais fazer nada. Se eu sair de casa, até fome ela passa, porque não consegue fazer comida. Só saio lá de vez em quando para catar". Além das sequelas, a companheira possui transtornos psíquicos que Altino não sabe especificar. Ela toma remédios fornecidos pelo Caps (Centro de Atenção Psicossocial), mantido pelo município.
Estão no Jardim das Américas há aproximadamente 30 anos. Os dois moram sozinhos em uma residência que agora é de material. Mesmo assim, as condições são precárias. Há cerca de seis anos, quando ainda era de madeira, foi queimada. Altino estava no distrito Guairacá ao receber a notícia. "Cheguei aqui, não tinha mais nada. Destruiu tudo, nossos documentos queimaram também. Fiz um barraco até arrumar a casa. Fui construindo por conta, ganhei tijolos de um patrão, na época. Os amigos ajudaram, mas a prefeitura não".
Com um terreno grande, o quintal abriga uma horta conservada por Altino para consumo próprio. Ao lado, uma pilha de recicláveis e a carroça castigada pelo tempo. Bom de papo, ele explica que os amigos catadores doam materiais para que possa vender quando juntar uma quantidade considerável.
Há alguns anos, o casal era beneficiário do programa Bolsa Família, do Governo Federal. "Mas o cartão foi perdido, acabou sumindo e nunca mais fomos atrás. A gente não tem nada. Mas para nós dois, qualquer coisinha dá. Eu só acerto minha água, a luz já está bloqueada faz tempo". As palavras de Altino comprovam o que é perceptível em uma visita. "Tem dias que as coisas faltam. Não dá pra dizer que tem tudo que uma casa precisa". O maior desejo é receber a aposentadoria. "Sou uma pessoa sossegada, não gosto de pedir ajuda. Mas se pudesse pedir alguma coisa, queria me aposentar".
Ao todo, tiveram cinco filhos. Um deles, morreu aos oito anos. O outro, foi assassinado há seis meses, "porque o pessoal novo não se considera muito", segundo o pai. Atualmente, os três filhos moram em fazendas. "São todos trabalhadores. Não tem como pedir ajuda para eles, porque eles também precisam". Quando questionado se já tinha netos, respondeu com uma sorriso que mostrava os dentes descuidados: "Quantos netos eu tenho? Não vou nem te contar, já são uns 12".
Enquanto conversava, Altino olhava para o cavalo, do outro lado da rua, em um terreno baldio. "Uma vez, levaram o cavalo embora, aí fui na rádio e consegui pegar de volta o Tordilho". A amizade entre os dois e o apreço pelo animal são expressados por uma frase triste e, ao mesmo tempo, bonita de se ouvir: "Só confio no meu cavalo e na minha carroça até eu me aposentar".

Tatiane e a mudança de vida

Simpática, Tatiane Silva Souza, de 23 anos, estava na casa da mãe com as duas filhas, uma de cinco e a outra de dois anos. A maior, com atitude, expressão e beleza dignas de uma futura modelo. A mãe não trabalha para cuidas das crianças, pois não tem com quem deixá-las. Tatiane casou há sete anos, quando tinha apenas 16, fato que espanta alguns e é corriqueiro para outros.
"Somos em cinco irmãos. Nasci na fazenda, sempre morei lá. Mas meu marido foi mandado embora faz um mês, aí viemos para a cidade. Ele está trabalhando por dia. Tem dias que dá uns quarenta reais. Só que um dia tem trabalho, o outro não tem... Agora, está fazendo um serviço em Pinhão, com lavoura, que meu pai arrumou. Ele planta e colhe, é a única coisa que entende, então tem que trabalhar com isso".
Tatiana relata que o casal está construindo uma casa no loteamento Feroz. Eles haviam se mudado há uma semana, mas ainda faltava terminar muita coisa, nas palavras dela. No primeiro mês em que estão experimentando uma nova vida, os parentes ajudam como podem. "Na fazenda, a gente não pagava luz e água, por exemplo, e aqui precisa pagar. Se não estivessem ajudando, ia faltar alguma coisa. Só com o dinheiro do meu marido, não ia dar".

Maria, Joel e as crianças

Maria de Aparecida Souza, de 45 anos, estava sentada na área de chão batido enquanto conversava e cuidava de dois netos que moram junto, um ainda de colo e o outro já caminhando. Ela tem dois filhos e o marido, mais dois. Um filho dela, de 14 anos, tem transtornos psíquicos e toma remédios concedidos pelo Caps. Ele nasceu prematuro, aos sete meses, como conta a mãe. Ela não sabe, entretanto, qual é exatamente a doença do filho. "Ele é bastante bravo, nervoso. E não vai muito bem na escola". O menino está na quarta série do ensino fundamental, pois reprovou algumas vezes. "Mas as mulheres falaram que está difícil ele passar, porque não estuda direito". Naquela semana, Maria havia levado o garoto para uma avaliação médica. "Mas eles [os médicos] não explicam direito o que é". Se pudesse fazer um pedido, seria receber ajuda para o filho. "Tem muita coisa que eu queria que mudasse, mas é difícil. Se eu conseguisse pelo menos um auxílio para ele, era melhor". Perguntada sobre as necessidades da família, Maria disse: "Faltar alguma coisa, sempre falta. A gente compra no bar, depois paga quando tiver dinheiro".
Atualmente, Maria cuida da casa, porque sofreu um AVC e não consegue trabalhar. Já foi empregada doméstica e funcionária de madeireira. "Fiquei três meses na cadeira de rodas. Agora, não posso fazer muita coisa. Até tenho vontade de voltar a trabalhar, mas tenho medo de não aguentar. Tenho problema de coluna, de colesterol alto e pressão alta. Quando me ataca a pressão, fico muito ruim". Ela toma quatro remédios por dia, que são fornecidos pela prefeitura. "Tomava também um remédio para dormir, que comprava por conta. O médico receitou porque eu não dormia e me dava vontade de chorar". Nessa hora, os olhos marejados de dona Maria demonstraram a angústia de uma vida toda.
Ela mora na mesma residência há 20 anos. O marido, Joel Brasil da Silva, há 17. "Ele se separou da mulher dele e a gente se amigou". Joel, de 47 anos, trouxe consigo duas meninas. "A mãe não pôde ficar com a guarda. Ela fugiu". Uma delas, como o pai contou, foi abusada sexualmente no município de Cantagalo. "O cara estava preso. Não sei se vão soltar ou não". O pai e as duas filhas estudam à noite. Ele conta que leva as meninas e aproveita para também aprender. "É muito longe, então tem dias que não vamos porque não tem gasolina no carro".
O homem está desempregado e trabalha por dia há algumas semanas. Ficou no último emprego, como laminador, durante três meses. "Mas deu um problema com o gerente e acabei saindo". Joel veio para a área urbana de Guarapuava há 27 anos. "Aqui tem mais serviço, nos matos é difícil". Agora, está procurando emprego, mas, segundo ele, não está fácil. "Eu tinha carroça e mexia com lenha antes também, mas agora estou meio quebrado. Mexo com todo tipo de serviço que aparece. Quando tem algum serviço, tem que fazer". Joel, que afirma faltar bastante coisa em sua casa, não irá se aposentar. "Não trabalhei com carteira assinada. Só tenho cinco meses de carteira, porque sempre fiz trabalho braçal e nunca foi registrado nada".

Leoni e os trabalhos do marido

Varrendo o pátio de terra e pedra brita, Leoni Ferreira Miranda, de 52 anos, contou um pouco sobre sua história. Ela é dona de casa, mas ajuda o marido a catar recicláveis. Ele trabalhou em várias empresas como motorista, mas não tem emprego fixo há dois anos. "Agora, está lidando com uma casa, como pedreiro, porque sabe construir. Ele pegou a casa pra fazer por dois mil e quinhentos reais. Essa semana, meu filho que mora aqui foi ajudar ele". Antigamente, o casal trabalhava recolhendo materiais no lixão. "Ganhava mais, dava mil reais por mês, dava pra viver bem com isso. Mas fecharam o lixão e a gente tem que ir pro Centro catar. Tenho medo de ir sozinha, só vou com ele junto. Agora, dá bem pouco por mês".
O marido faz serviços por dia, para ajudar na renda familiar. "Quando arruma esses bicos, vai fazer. Ele procura serviço, mas está difícil. Ele tem 52, nessa idade é mais difícil conseguir". Leoni contou que ele foi na Agência do Trabalhador há algumas semanas, porque havia uma vaga para motorista. No entanto, a falta de estudo falou mais alto. "Eles queriam que tivesse o segundo grau completo, e ele não estudou, porque começou a trabalhar criança pra ajudar a família. Eu só tenho até a terceira série também". Ela nasceu em Laranjeiras do Sul, mas veio para Guarapuava há muitos anos, morar no interior. "A gente morava numa serraria, eu e meu marido. Aí terminou o tempo da madeireira e nós viemos pra cá, pra cidade. No acerto da firma, compramos esse lote e fizemos a casa".
As ocupações temporárias são alternativas para se conseguir um pouco mais de dinheiro. Em meados de dezembro, o casal começará a trabalhar na colheita de batata, que prossegue até junho do próximo ano. "Quando é safra boa, a gente ganha bem. Se você catar doze sacos, ganha seis reais. É pouco. Enfrentar esse solão, é difícil". O marido também é tratorista no campo, recebendo por dia. A casa simples da família foi construída pelo marido. Contudo, a obra ainda precisa ser concluída. "Queria um emprego pro meu marido, pra conseguir terminar a nossa casa". No quintal, uma horta útil para fazer o almoço. "Cuido da minha hortinha aqui, porque não dá pra ficar comprando".
Leoni fala, com orgulho, que não quer pedir auxílio. "A prefeitura não ajuda e eu nunca vou pedir também. A gente recebe o Bolsa Família das crianças. A minha filha que mora em Foz do Iguaçu ajuda a gente quando pode, mas ela está construindo uma casa também, e não está fácil". Três filhos estão estudando, mas precisam ir ao bairro Aeroporto, porque a escola do Jardim das Américas não oferece ensino médio. "Em dia de chuva, eles perdem aula, porque vão a pé e é longe".

Vídeo de Gabriela Titon

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