segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

A arte que transcende os sentidos

Teatro e orquestra de cegos: a arte não está no que vemos e sim no que sentimos

Aline Bortoluzzi

Para determinados tipos de artistas, as sensações não entram através dos olhos e sim, são transmitidas através do toque, da conversa e mais do que tudo, do ouvir o outro. Para aqueles que em certo momento da vida perderam o dom precioso a visão, o processo é mágico e emocionante de se ver, ou melhor, de sentir. Há 16 anos, a Apadevi (Associação de Pais e Amigos dos Deficientes Visuais de Guarapuava), sob coordenação da arte-educadora Eglecy Lippmann, fundou um grupo de teatro. O grupo também se expande no momento com a formação de uma pequena orquestra que será apresentada em forma de auto, estreando em 2012. A peça já percorreu várias cidades do Estado, formada por cerca de 15 atores, sem limitação de idade, numa faixa que vai desde o Luan, de 9, até o Seu Miguel, de 84 anos.
O carro chefe é a peça “O Estorvo”, onde há interação entre atores e público - seja através de toques, músicas, dança, cheiros e degustação é máxima -, fazendo com que todos reflitam sobre as dificuldades que passam os deficientes visuais para conviver na sociedade “dos que enxergam”, nos fazendo perceber o quanto estes se sentem excluídos, muitas vezes por não sabermos lidar com esse tipo de situação. Eglecy Lippmann explica: “o que predomina não é deficiência, é a eficiência. Essa questão da limitação é superada quando se trata de uma manifestação artística. É essa a nossa ideia, mostrar a potencialidade das pessoas. Sejam elas com limitações visuais, auditivas ou físicas, o que nos interessa é um produto estético”.
Os cegos, habituados a conviver no universo feito para os que enxergam, convidam o público a vendar os olhos durante toda a apresentação e adentrarem no mundo dos deficientes visuais. Para Eglecy, “essa foi a maneira que encontramos de discutir a inclusão, e não tem uma forma mais adequada do que o ‘outro’ perceber como o ‘eu’ percebo sensivelmente. As pessoas ficam bem tocadas, ensina uma lição: as pessoas têm olhos mas não enxergam, é uma forma de você valorizar o que tem e também ir de encontro com aquele que não tem, pra facilitar as relações como um todo”.
Celi Marcondes perdeu a visão há seis anos devido há um transplante mal sucedido e começou a participar do grupo após anos de isolamento do mundo externo. Para ela, a música e o teatro a fizeram renascer. "Eu perdi a visão dos olhos, mas da alma não perdi”. Seu Miguel Simão Viato tem 84 anos, é policial aposentado e aos 69 perdeu a visão devido ao glaucoma. É o membro mais velho do teatro e também toca flauta na orquestra. Às gargalhadas, ele conta: “Na peça, eu disse pra uma mulher: ‘eu vou te pegar pelo braço, te levar do outro lado, você conhece essa sala?' 'Não'. 'Então é um perigo! Eu também não conheço, sou cego, mas me falaram que aqui dentro tem um poço de 50 metros de fundura e metade está cheio de água, cuidado!’ A mulher tremeu de medo, mas confiou em mim”. Para Giovani de Lima, 21 anos, que planeja prestar vestibular para jornalismo em 2012, cego desde os 6 meses de idade, conta que o teatro é o momento de encontro e emoção. "No teatro, tem a hora da dança, com o cego e a pessoa vendada, aí eu sinto que as pessoas estão emocionadas. Nós somos obrigados a viver no mundo de quem enxerga, eles também podem viver no nosso".
A ideia é que o público mergulhe para dentro da peça e sinta na pele, ou melhor, nos olhos, por alguns instantes, como é o mundo de quem não enxerga. A arte se torna uma ferramenta de inclusão social, onde pessoas que sofrem com preconceito ou até mesmo com a falta de informação de outros, se aceitam melhor, da maneira que são, se sentem mais inclusas nas relações humanas e mais capacitadas para também desenvolver produtos artísticos.
A coordenadora do projeto explica que o ser humano, quando lesado de algumas capacidades sensórias, potencializa-se em outros sentidos. No caso dos cegos, a audição e o tato, bem como a proficiência para música são, na maioria das vezes, mais aguçados do que nas pessoas que enxergam, fazendo com que tal processo se reflita, muitas vezes, na arte.
Mas como pessoas com deficiência visual podem “aprender” a apreciar uma obra de arte? Para as pessoas que já enxergaram em algum momento da vida e perderam a visão por alguma doença, a arte é algo mais concreto, o cego já teve contato visual com alguma expressão artística antes. Para os que nasceram sem a visão, trata-se de um processo muito mais complexo. A arte, nesse caso, atinge o ápice de sua característica imagética. Outras formas são trabalhadas, outros sentidos são estimulados para que o imaginário do deficiente visual tenha uma percepção sobre aquilo que está sendo apresentado em sua frente.

Acessibilidade para a arte

Além de produzir arte, pessoas com necessidades especiais como os cegos também têm a possibilidade de apreciar obras. Hoje, nos grandes centros culturais pelo mundo, podemos verificar algumas mostras específicas para deficientes visuais, onde podem “apalpar” obras com matéria-prima de textura diferenciada, em alto relevo ou até mesmo sentir seus aromas. É o caso do Museu dos Cegos de Madri, construído especialmente para deficientes visuais, e o Museu de Belas-Artes de Nice, na França, que dedica a maioria de seu espaço para tal fim. Unindo arte e tecnologia, esses museus fazem o papel de levar uma produção mais democrática às pessoas. O Museu de Madri foi construído com piso especial para facilitar a locomoção, possui todos os catálogos em braile, bengalas especiais que funcionam de forma magnética, maquetes das grandes cidades do mundo para serem tocadas e a iluminação foi pensada para orientar aqueles com cegueira parcial.
No Brasil, o incentivo à cultura, propriamente dita, é praticamente nula se comparada com países desenvolvidas, quanto menos o incentivo à acessibilidade da arte para pessoas com necessidades especiais. Alguns centros culturais do Rio de Janeiro e São Paulo estão dando os primeiros passos na acessibilidade da arte para cegos, mas não há iniciativas que se aproximem, nem de longe, dos museus europeus. Em nosso país, a cegueira atinge, segundo Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, 1,5% da população brasileira.
A arte da música também vem sendo cada vez mais difundida entre cegos e surdos. Exatamente! Música para surdos. Pode soar um tanto estranho, mas a música não se faz apenas de notas audíveis, mas também de vibrações sonoras, sentidas na pele. Algumas tecnologias permitiram que a arte se transformasse em algo democrático no universo de pessoas não dotadas de alguns sentidos humanos.

Editado por Gabriela Titon

Fotos: Aline Bortoluzzi



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* Matéria produzida durante o segundo semestre de 2011 na disciplina de Pesquisa em Comunicação no 4º Ano do Curso de Jornalismo da Unicentro.

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